Como utilizar gêneros digitais para estudar os clássicos da literatura
Educadora reflete sobre a importância de explorar textos literários na escola e compartilha caminhos para engajar os alunos dos Anos Finais do Ensino Fundamental
POR: Ana Cláudia SantosA memória é um movimento interno que nos permite resgatar imagens carregadas de valores construídos a partir de nossas vivências e de experiências significativas. Já pensou em suas memórias afetivas da infância? Muitas delas são histórias contadas pelo imaginário, com potencial de superpoderes, “bolsas amarelas”, como bem diria Lygia Bojunga, cheias de desejo. Por meio da prática leitora, desenvolvemos a capacidade de fabular, inventar e representar a realidade e nos tornamos cidadãos do mundo.
Lendo as palavras do escritor e crítico literário Roland Barthes – “A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa” –, entendemos que o ensino de literatura é a ponte que une nosso mundo real ao ideal, é o ponto de encontro entre discursos diversos.
Não pretendemos tratar o texto literário como um objeto utilitário, com a função única de auxiliar no processo de leitura e compreensão da escrita. Mas, sim, perceber a literatura como arte, como potência para integrar diferentes saberes; uma prática social humanizadora, ou seja, um processo que se movimenta entre o que se reconhece no texto e o que se apropria dele.
O papel da escola
A concepção de leitura literária e a inserção da escrita à cultura passam pela responsabilidade da escola e, para atender à formação de leitores (dentro e fora dela), o letramento literário torna-se uma expressão que implica dar sentido ao mundo das palavras.
Para isso, nada melhor do que começar por letrar nossos alunos, fazê-los enxergar além de letras e números, construir a consciência coletiva do que é ler o mundo; dar-lhes a chance de compreender como cada um deles se constitui enquanto sujeito social, relacionando a própria realidade às produções literárias.
Enquanto professores, somos promotores e mediadores do encantamento, do encontro diário com o fantástico, que tem a capacidade de falar simultaneamente com distintos níveis de personalidade humana, estabelecendo com o leitor um contato sem a intermediação do pensamento lógico e utilizando, para isso, uma linguagem marcadamente simbólica e cheia de sentidos.
No cotidiano escolar, podemos usar algumas estratégias para envolver nossas turmas nesse universo de encanto. Um caminho é despertar a curiosidade dos alunos, provocar-lhes sensações, motivando-os para que estabeleçam relações de proximidade com suas vivências e com outros textos.
Ao dar início a uma leitura, apresente a obra resgatando o contexto histórico e da autoria: quem é o autor, qual lugar ele ocupa, de onde fala. É uma preparação para o momento mais desafiador, o contato com o texto, já que é a partir dele que outras tantas visões serão oportunizadas.
A interpretação é uma visão social que atribuímos à obra, é a competência de moldar conceitos, amadurecer opiniões ou ampliar a capacidade de experienciar e (re)visitar mundos próximos ou distantes dos nossos.
Para estudarmos literatura em nossas escolas, não devemos desconstruir o texto literário para atrair a atenção de nossos alunos. Precisamos, sim, ajudá-los a construir suas próprias memórias.
Literatura e tecnologia
Tendo em vista as ideias de letramento e literatura, podemos entender que o letramento literário, na contemporaneidade, traz luz ao papel das tecnologias na formação de um leitor crítico. Esses novos recursos favorecem a circulação de textos e oferecem possibilidades inéditas de democratizar e discutir propostas de leitura e escrita.
Um exemplo disso são as fanfics, gênero digital em ascensão, que democratiza e amplia o acesso aos textos literários que trafegam de forma dinâmica criando novos interesses. O nome vem da abreviação de fanfictions, histórias recriadas por fãs de autores, personagens, livros e tantas outras criações literárias. Que tal aproximar esse gênero da literatura clássica? Tomemos como exemplo Machado de Assis.
Aproximar a turma dos clássicos
Para dar início, instigue a curiosidade dos alunos. Pode trazer informações curiosas sobre o autor, tais como o fato de ter se tornado conhecido como o “Bruxo do Velho Cosme”. Conte que o apelido faz referência ao lugar onde viveu e à intertextualidade com o texto A um bruxo, com amor, de Carlos Drummond de Andrade.
Mostre também como a moda está presente nos contos do autor carioca e refletem como foi o século 19 no Brasil, a exemplo do que pode ser lido em uma conversa entre as personagens do conto O caso da viúva. Para aproximar o contexto machadiano dos nossos dias, provoque reflexões sobre os influenciadores do nosso tempo. Crie situações que relacionem as criações de Machado de Assis com as vivências dos alunos.
Para dar a conhecer o “Bruxo”, oportunize a leitura de contos encontrados em diversas coletâneas. Uma que eu gosto é Machado de Assis para principiantes, organizada por Marcos Bagno. A obra reúne contos e fragmentos de textos do autor por temas diversos, como dinheiro, vaidade e loucura.
Outra alternativa para tratar de leituras ditas como eruditas, acessíveis para poucos, é apresentar novelas gráficas, títulos que são representações gráficas de obras já consagradas da literatura, como O alienista, Dom Casmurro e A cartomante.
Fanfics machadianas
Depois de conhecidos os textos, é hora de preparar a releitura. Primeiramente, incentive os alunos a refletirem sobre as personagens, como agem e como são os acontecimentos relatados. Escolhida uma perspectiva de análise, é hora de usar e abusar da criatividade para criar as fanfics! Os alunos podem inserir novas personagens, transportar a narrativa para os dias de hoje ou dar um final alternativo.
Aproveitando para explorar os gêneros textuais contemporâneos, proponha também a criação de uma playlist comentada. As músicas escolhidas pelos alunos devem dialogar com o tema principal das histórias lidas, e é interessante que estejam acompanhadas de comentários que estabeleçam essa relação de sentido.
A literatura nos oferece infinitas possibilidades de diálogo. As lembranças transitam no presente para revelar o processo pelo qual passamos e, se há algo que abarca essa narrativa, eu diria que é aprender a valorizar o processo de construção de saberes.
Gostaria de encerrar com a pergunta de Lewis Carrol, em seu livro Alice no País das Maravilhas: “Para que serve um livro sem figuras nem diálogos?”, já que a leitura literária nos interroga o tempo todo a respeito disso.
Esses textos são capazes de formar um leitor crítico e propiciar a reflexão e a análise – e são também responsáveis por nos fazer sentir, pela emoção, pelo sonho, pela liberdade de quem escreve e de quem lê e por possibilitar mais experiência, dilatando os horizontes de escolhas.
Desejo a todos coragem para dialogar com o revolucionário da palavra, que faz com que a leitura seja ativa, viva!
Um abraço e até a próxima
Ana Cláudia
Ana Cláudia Santos é professora de Língua Portuguesa na educação básica da rede estadual de ensino há 20 anos e mestranda em Educação Profissional e Tecnológica. Foi vencedora do Prêmio Educador Nota 10, promovido pela Fundação Victor Civita, nas edições de 2014 e 2018, com os trabalhos O Povo Conta e O (Ser)tão de Cada Um. Recebeu a medalha Ordem do Mérito Educacional (MEC) – Grau de Cavaleiro e o troféu Capitão-Médico João Guimarães Rosa, da Academia de Letras da PMMG.
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