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Como desconstruir ideias negacionistas?

Narrativas baseadas em fake news podem servir de ponto de partida para ensinar o funcionamento do método científico para os alunos

POR:
Bruno Mazzoco
Ilustração: Julia Coppa/NOVA ESCOLA

A existência de pessoas e grupos que duvidam de fatos comprovados pela ciência e apresentam versões alternativas para determinados fenômenos não é uma novidade. Basta lembrar que tanto Nicolau Copérnico (1473-1543) quanto Galileu Galilei (1564-1642) tiveram de “adequar” suas teorias para atenderem às diretrizes da Igreja Católica e escaparem da fogueira. Outro exemplo mais recente são os grupos que insistem em negar o genocídio do povo judeu pela Alemanha nazista. Foi para se referir a eles que o historiador francês Henry Rousso (1954) cunhou, no final da década de 1980, o termo negacionismo. 

De lá para cá, a expressão tem servido para se referir a qualquer discurso que busque negar um fato cientificamente comprovado. Os exemplos são fartos e vão desde a afirmação que a Terra é plana até a negação da emergência climática por conta do aquecimento global. Com a pandemia de Covid-19, a expressão mais visível do negacionismo passou a ser aquela que questiona a eficácia das vacinas. 

“O questionamento sobre as vacinas está sendo muito forte. Eles perguntam se ela causa autismo, se é perigosa”, conta a professora de Ciências Flávia Perles Costa Cordeiro, da rede estadual de Campinas (SP), cidade a cerca de cem quilômetros de São Paulo. Segundo a docente, uma das razões para o ceticismo da turma são as informações falsas (fake news), divulgadas em vídeos e em mensagens nas redes sociais, que colocam a segurança das vacinas em dúvida. “Antigamente, a gente entrava em sala para dar uma matéria. Hoje, entramos para rebater notícias falsas”, resume Flávia. 

Para Gabriela Monteferrante Deliberali, mestre em Ensino de Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o momento atual tem favorecido a disseminação de narrativas que exploram preconceitos. “Abriu-se um leque para a dúvida. As pessoas ficam à mercê de narrativas, e aí crescem os medos. E o medo é uma arma social. Houve quem tenha se aproveitado dele.” 

Fábio Boreli, formador de professores da rede municipal de São Paulo, aponta que, muitas vezes, são os estudantes os responsáveis por desfazer ideias equivocadas em casa. “Por isso é importante que eles tenham mecanismos para saber buscar e avaliar informações”, diz. 

Desenvolvendo a criticidade

Nos Anos Finais do Ensino Fundamental, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) estabelece que a construção do pensamento científico se dê a partir das questões que fazem parte do universo social dos alunos. Com isso, busca-se que eles entendam diferentes aspectos do mundo que os rodeia e possam “estabelecer relações ainda mais profundas entre a ciência, a natureza, a tecnologia e a sociedade”. Uma das chaves para isso passa pela construção do pensamento crítico. Fábio explica que é importante mostrar que a ciência parte da observação de aspectos da realidade para oferecer respostas, ainda que provisórias, para determinadas perguntas. E analisar as fake news pode ser um caminho para aproximar os estudantes dos procedimentos da ciência. “Por exemplo, a Terra plana. Onde eles viram essa informação? É importante trazer esses dados e colocar os alunos para pesquisar”, recomenda.  

Gabriela também defende usar o negacionismo como ponto de partida, como uma hipótese a ser confirmada ou não. “Uma hipótese é sempre uma afirmação. Aí, cria-se uma atividade para eles confirmarem ou não. Eu acho que o erro é o professor querer apenas rebater, sem acolher o que os alunos trazem.”

Carteirinha de vacinação: uma aliada contra o negacionismo

Ao começar o ano letivo de 2021, ainda de forma remota por conta das medidas de enfrentamento à pandemia, a professora Flávia Cordeiro teve de enfrentar a desconfiança em relação aos imunizantes contra Covid-19 nas turmas da EE Dom Barreto e da EE Carlos Gomes, ambas situadas em Campinas. 

A maioria dos alunos trazia dúvidas provenientes de relatos não comprovados cientificamente, como os de que a vacina poderia causar autismo ou intoxicação por mercúrio. Outros diziam ter receio de reações por conta da rapidez com que foram desenvolvidas. Diante de tantos questionamentos, a educadora resolveu dar um passo atrás e falar sobre os imunizantes que os alunos já haviam tomado até então. Para isso, pediu que todos trouxessem as carteirinhas de vacinação para a aula. Ao consultar o documento, eles descobriram que as campanhas de vacinação são uma política frequente e exitosa na prevenção de uma série de doenças. 

Em seguida, divididos em grupos, os alunos realizaram pesquisas sobre como as vacinas funcionam e quais são as etapas necessárias para seu desenvolvimento e aplicação na população – acesse aqui um infográfico a respeito do processo de produção de imunizantes. Flávia orientou-os a buscar informações nos sites dos institutos Oswaldo Cruz e Butantã e em outras publicações científicas. “Um ponto importante é o professor fazer a curadoria das fontes. Assim, eles vão desenvolvendo a capacidade de confrontar ideias com base nessas informações”, recomenda Fábio. Gabriela aponta que esse pode ser um bom momento também para ajudar a turma a discernir entre fato e opinião. “Por exemplo, quando quero trabalhar uma informação, eu forneço um material e faço três perguntas: o que eles leram? O que pensam sobre o assunto? E como o que leram se relaciona com o que pensam? É comum que eles misturem o que leram com opinião”, diz. 

Após a pesquisa, Flávia buscou, então, consolidar o entendimento das informações com uso da linguagem cotidiana, mais próxima da realidade dos alunos. “Eu expliquei que a vacina ‘dá uma trollada’ no organismo, que está sendo enganado para criar anticorpos.” 

Na sequência, eles pesquisaram sobre o surgimento da Covid-19. Nessa etapa, os alunos puderam tomar conhecimento de que, embora a doença fosse nova, tanto a família dos coronavírus como os principais métodos de desenvolvimento de vacinas já eram conhecidos pela comunidade científica. Então, Flávia argumentou com a turma que o tempo recorde alcançado na produção do imunizante só foi possível por conta dos saberes acumulados nessa área. Aproveitou ainda para abordar o processo de aprovação dos imunizantes junto à Anvisa e destacou o caso da vacina russa Sputnik, que teve seu registro negado por não cumprir os critérios estabelecidos pela agência. 

Munidos de informações confiáveis, Flávia encerrou a atividade com a turma retomando as fake news responsáveis pela desconfiança manifestada nas conversas iniciais. A sala foi divida em dois grupos. Os estudantes de um grupo deveriam defender os imunizantes; o outro seria responsável por contra-argumentar em favor das teorias que buscavam desacreditar as vacinas. “Bombardeados com informações fidedignas, eles nem conseguiram levantar informações falsas”, lembra a docente. 

Diferentes visões sobre a evolução das espécies

Atuando no ensino público do Amazonas desde o início da pandemia, a professora de Ciências Luciana Gomes diz que o negacionismo em relação às vacinas passou longe de suas turmas na EE Professor Rofran Belchior, em Manaus. Ela atribui o fato principalmente à gravidade da pandemia no estado. No entanto, ao tentar trabalhar com a teoria da evolução das espécies, de Charles Darwin (1809-1882), ela esbarrou nas crenças religiosas de parte da turma. “Muitos diziam que não queriam ouvir para não deixarem de acreditar na religião”, conta. Luciana, então, mudou o planejamento para falar sobre a história da ciência. O objetivo era mostrar que conhecimento científico e crença religiosa podem coexistir, embora não tenha sido sempre assim.  

A primeira atividade foi a apresentação de uma breve linha do tempo mostrando que, em alguns momentos da História, as visões da ciência e da religião entraram em conflito – como nos casos de Copérnico e Galileu, citados no início da reportagem. Contudo, após o estabelecimento do método científico, coube progressivamente à ciência o papel de explicar os fenômenos naturais. Com o Renascimento e a separação entre Estado e Igreja, a religião passa, cada vez mais, a ser vista como uma questão de crença pessoal. “A proposta era mostrar que o conhecimento científico é construído com base em dados obtidos da natureza”, explica. 

Na sequência, os alunos foram convidados a mergulhar no processo de construção do pensamento científico. Para isso, a professora realizou uma atividade utilizando diferentes objetos em vários potes de plástico opaco (de sorvete, por exemplo). Os alunos tinham de deduzir, por meio da observação, qual era o objeto dentro de cada recipiente. Valia chacoalhar, colocar contra a luz, cheirar. Só não podiam abrir o pote. 

Todos os palpites foram anotados, e os alunos tiveram de argumentar entre si para chegar a uma resposta comum. “O que interessava era a construção do pensamento e o estabelecimento do consenso. Por mais que a gente pense que é uma coisa exata, a ciência é uma construção do conhecimento humano”, diz Luciana. 

A atividade final, feita em grupos, utilizou o método jigsaw (quebra-cabeça). Diferentes teorias sobre a origem das espécies (fixismo, teoria sintética e teoria da evolução) foram apresentadas e precisavam ser estudas por um aluno de cada grupo. Cada aluno estudou um pequeno aspecto da teoria que lhe coube. Na etapa seguinte, os estudantes foram reagrupados de acordo com o tema que estavam estudando para que pudessem “montar o quebra-cabeça” conjuntamente, isto é, compor um panorama mais amplo do tema estudado a partir da contribuição de cada um. Para encerrar a atividade, todos voltaram para seu grupo original, para explicar o que haviam aprendido para os demais e responder a um questionário sobre cada uma das teorias. 

Ao final da sequência de atividades, a resistência à teoria de Darwin havia sido desfeita. Aos poucos, Luciana foi mostrando que crença e ciência não precisam estar em conflito. “O mais importante foi mostrar que a ciência trabalha com incertezas, mas que, ao mesmo tempo, tem todo um processo de coleta de evidências para se chegar a uma conclusão confiável.”

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