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Como a brincadeira pode estimular a leitura e a escrita na alfabetização

Utilizar situações vivenciadas durante as atividades permite avançar nas aprendizagens de forma significativa

POR:
Caroline Rezende

Brincadeiras proporcionam situações que podem ser utilizadas, posteriormente, para propor uma reflexão a respeito do sistema de escrita. Foto: Getty Images

É consenso que as crianças aprendem por meio da brincadeira e da interação na Educação Infantil. Mas e no 1º ano do Fundamental? A brincadeira não é mais uma estratégia para a aprendizagem?

Elas continuam sendo crianças. Por isso, na passagem da Educação Infantil para os Anos Iniciais, não podemos deixar de considerar essa condição fundamental da infância para aprender: a brincadeira.

Em minhas salas de primeiro ano, e até mesmo com crianças maiores, a brincadeira sempre esteve presente para o desenvolvimento integral da turma.

A cultura escrita nas brincadeiras

Na idade em que as crianças ingressam nos Anos Iniciais, a brincadeira simbólica, o faz de conta, já se instaurou no cotidiano. Elas imitam as profissões de pessoas de suas famílias, que veem no bairro, na televisão ou na internet. Querem brincar de ser professor, padeiro, médico, costureiro, ator, vendedor etc.

Além disso, a rotina doméstica também aparece nesse tipo de brincadeira, independentemente do gênero. Replicam momentos de fazer comida, de dar de mamar para o bebê, de passear com o filho, de limpar a casa, entre outras atividades diárias que observam em casa.

Durante essas situações, elas não envolvem apenas outras pessoas ou objetos, mas também a cultura em que estão inseridas. Mobilizam crenças, referências artísticas, conhecimentos, costumes, significados transmitidos historicamente, entre outros hábitos e habilidades construídas pelo ser humano como participante de uma sociedade – e isso inclui a escrita.

Escrita como elemento cultural

Muitas vezes ignoramos que, dentre os aspectos de uma cultura, está a escrita. Corriqueiramente, escrever é visto como uma técnica a ser aprendida, que envolve atividades maçantes de treino durante horas a fio. Agora, se entendo a escrita como elemento cultural, uma forma de registro e manifestação social, presente no meio em que vivem as crianças, um valor para os sujeitos da cultura em que estão imersas, a conversa assume novos rumos.

Dessa forma, nessas brincadeiras criadas espontaneamente pelas crianças e pelo professor, a escrita está inserida de forma orgânica. E as brincadeiras são ótimas oportunidades para trabalhar uma alfabetização contextualizada.

Antes da brincadeira: como planejar esses momentos

Reservo, na semana ou quinzenalmente, um momento dedicado exclusivamente para o brincar. Nos dias anteriores, escuto as crianças para planejar quais materiais irão compor o ambiente da sala de aula.

Geralmente, combinamos vários cantinhos com diferentes objetivos escolhidos pelas crianças, de acordo com o faz de conta pelo qual optarem. Identificar os desejos e interesses das crianças é importante. Não sou eu quem decido a brincadeira. Posso até dar ideias e contribuir com minhas experiências brincantes, mas o protagonismo e a escolha são delas.

Em certa ocasião, minha turma decidiu que teríamos na sala supermercado, padaria, escola, salão de cabeleireiro, pet shop e casinha. Registrei na lousa os ambientes que teríamos e pedi que me ajudassem a pensar o que tinham em suas casas que poderia ajudar a compor esses diferentes lugares.

Elas ditaram e eu escrevi abaixo de cada uma das propostas as materialidades. Para exemplificar, relato como foi a conversa para o planejamento de dois cantinhos:

Professora: O que precisamos ter no supermercado?

Crianças: Detergente, sabão, arroz, bolacha, leite...

Professora: Podemos pegar embalagens vazias em casa para fazer de conta que temos esses itens.

Criança: Sim, eu tenho também garrafa pet vazia em casa, professora!

Professora: Pessoal que sugeriu a brincadeira de casinha, acho que vocês poderão ir ao mercado fazer compras, não é? Vai que falta leite para o bebê, detergente para lavar a louça...

[As crianças concordam.]

Professora: Para ir ao mercado e não esquecer nada, o que a mamãe faz?

Crianças: Faz uma lista, escreve em um papel o que tem de comprar!

Professora: Ah, então eu vou disponibilizar folhas e canetas para vocês, caso precisem.

Ao final, ajudaram-me a redigir uma mensagem para enviar no grupo de WhatsApp das famílias, para que ajudassem a reunir esses elementos.

Durante a brincadeira: inserindo situações de escrita

Após organizar os espaços, começamos a brincar. Nesse momento, eu vou circulando pelos grupos e também participo. As crianças andam pelos diferentes ambientes, negociam trocas de materiais para compor a brincadeira que escolheram, interagem e inventam novas possibilidades.

A escrita acaba aparecendo naturalmente ou é sugerida como uma ação importante para compor o faz de conta de algum ambiente específico. Durante a atividade, as próprias crianças sugeriram a necessidade de escrever na padaria que o caixa anotaria o pedido do cliente; no salão de cabeleireira, um panfleto de promoção foi produzido por uma criança.

Também me lembro que Gabriela, que tem origem peruana, me chamou para brincar de “viagem de avião”. Sentei-me na “poltrona” e disse: “Por favor, comissária de bordo, poderia me trazer uma água, um café e um lanche?”. Ela correu para pegar um bloquinho disponível para anotar.

Percebam que, nesse momento, não fiz intervenções na forma como produziam os escritos. Minha intenção era que tivessem o direito de aprender cada vez mais por meio da brincadeira sobre o “modo de existência da escrita na sociedade”, como defende Emília Ferreiro em seus estudos.

São inúmeras as práticas sociais do uso da linguagem escrita no nosso dia a dia. Elas fazem parte do nosso cotidiano, e ignorá-las ou evitá-las é deixar para trás um aspecto importante da nossa cultura.

Dica para se aprofundar

Em minha prática, dentre as várias pesquisadoras em alfabetização importantes que temos na América Latina, baseio-me nas importantes contribuições de Emília Ferreiro. Durante a escrita desta coluna, tomei como inspiração o livro O ingresso na escrita e nas culturas do escrito, que contou com a colaboração de diversas alunas da educadora. Indico a leitura desse livro a vocês!

Depois da atividade: possíveis desdobramentos

Nos Anos Iniciais, além de pensar como a escrita aparece e circula na sociedade, as crianças também precisam refletir a respeito do sistema de escrita. Nesse processo, elas devem entender:

  • Qual a relação entre o escrito e a oralidade?
  • O que da oralidade reaparece na representação escrita e de que forma?
  • O que da oralidade fica de fora do escrito?

Na busca por apoiar as crianças nessas reflexões, que as conduzirão paulatinamente a uma escrita alfabética, também uso situações desses momentos de brincadeira. O objetivo é que elas possam aprender a ler lendo e a escrever escrevendo, ou seja, com a mão na massa.

Um exemplo é a própria lista dos ambientes, que já foi um bom desafio para refletirem. Em outro momento, perguntei a uma criança de quais brincadeiras ela tinha participado. Ela respondeu que foi funcionária do mercado e cliente da padaria. Então pedi que encontrasse onde estava escrito padaria e comecei a perguntar e propor uma reflexão para que chegasse à resposta:

Professora: Com que letra acredita que começa a palavra?

[Ela respondeu que iniciava com P.]

Professora: Verdade! Há duas palavras que começam com a letra P, mas vou te dar uma dica: olhe a lista de nomes e procure o nome da Patrícia. Como o nome dessa colega pode ajudar a pensar em PADARIA? Que parte de Patrícia ajuda mais a pensar no começo da palavra PADARIA?

Em outra situação fiz uma intervenção com base em minha observação. Comecei dizendo: “Ontem percebi que o João Lucas anotou o pedido da cliente Kethelyn na padaria. Vocês lembram quais eram os itens? O João pode ajudar a lembrar?”.

Ele respondeu que os itens eram pão, leite e bolo. Em seguida, organizei as crianças em duplas para escreverem essas palavras utilizando um alfabeto móvel. Fui circulando pela sala e fiz perguntas como: para escrever “leite”, quais são as boas letras? Será que temos o nome de algum colega que pode ajudar a pensar nessa escrita? Nesse caso, eles utilizaram como referência o nome de uma das estudantes, Letícia.

A mesma estratégia pode ser adaptada para outros tipos de brincadeiras. Por exemplo, listas de brincadeiras preferidas ou cantigas para brincar de roda.

Em resumo, compartilhei com vocês, queridos colegas, propostas que utilizam o espaço como educador, no qual as crianças, como na Educação Infantil, escolhem livremente suas brincadeiras e interagem com os materiais e os colegas. Também, como desdobramento posterior, estão a atividades de reflexão a respeito do sistema de escrita com base em situações vivenciadas e registros de uma atividade anterior.

São muitas possibilidades para garantir que o brincar continue presente no cotidiano das crianças no Ensino Fundamental, especialmente no ciclo de alfabetização.

Até a próxima!

Caroline Rezende

Caroline Rezende é professora alfabetizadora na EE Prudente de Morais, na capital paulista, e mestranda em Escrita e Alfabetização pela Universidade Nacional de La Plata. Também atua como formadora de educadores.

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