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Faz de conta: conhecimento que se constrói brincando

Com imaginação e ação, as crianças se expressam em relação ao mundo que as cerca – e o professor tem papel central nessa atividade

POR:
Victor Santos
Crédito: Getty Images

Passar a tarde brincando de escolinha ou de casinha, ou até propor ao amigo: ‘finge que você é um cachorro e eu sou um gato’. Em tempos presenciais, o Instituto Pró-Saber SP, organização da sociedade civil que funciona na comunidade de Paraisópolis, na capital paulista, tinha crianças brincando por toda parte.

“A gente percebe que são oportunidades que elas têm para experimentar e ser um pouquinho de cada coisa. No fundo, toda brincadeira envolve um faz de conta, uma imaginação, uma criação por trás”, diz a coordenadora pedagógica Fernanda Renner.

O local tem como eixo estruturante o direito à leitura e ao brincar para contribuir com o fim das desigualdades sociais. 

Quando observamos esse cenário cotidiano em casa e nas escolas, identificamos uma certa ‘onipresença’ do faz de conta – mas isso não quer dizer que lidar com a temática é simples.

Pelo contrário: se por um lado esses jogos simbólicos envolvem muita espontaneidade por parte dos pequenos, por outro, o professor tem um papel-chave na consolidação dessas brincadeiras.

Para saber mais, NOVA ESCOLA ouviu três educadoras em busca de entender a função do faz de conta na Educação Infantil, e as melhores estratégias para conduzir um trabalho pedagógico de qualidade, mesmo em tempos de pandemia. 

Antes de focar no faz de conta, é válido traçar um rápido panorama sobre o papel das brincadeiras na formação dos pequenos.

“As brincadeiras, no geral, possibilitam que as crianças construam os seus conhecimentos e suas hipóteses, elaborem perguntas e estabeleçam significados para o que ocorre na escola e fora dela”, sintetiza Elaine Lindolfo, formadora de professores na Elos Educacional e professora da EMEB Hygino Baptista de Lima, em São Bernardo do Campo (SP), com 32 anos de atuação na educação pública do município. O faz de conta permite experimentar o mundo cotidiano por meio das brincadeiras.

Durante a ação, as crianças mostram o que conhecem, o que não conhecem, suas dúvidas e ideias.

O faz de conta envolve todo um jogo dramático. “Nele, as crianças experimentam diferentes papéis ao longo da brincadeira, e com isso, elaboram o pensamento e utilizam-se de linguagens, para enfim demonstrar as coisas que vivenciam, acreditam, e o que gostariam de aprender”, detalha Elaine.  

Gisela Wajskop, doutora em Educação, especialista nas relações entre o brincar e a Educação Infantil e idealizadora da Escola do Bairro, explica que por mais que as crianças se inspirem nos seus entornos, não se trata de uma imitação literal da realidade.

“Elas não brincam porque veem, elas brincam porque imaginam”, destaca a educadora, “como diria Lev Vygotsky (1896-1934): ‘a brincadeira é uma imagem em ação’. E como as aprendizagens acontecem na prática?

A coordenadora Fernanda gosta de exemplificar com o brincar de casinha, tão usual entre os pequenos. “Nessa brincadeira é interessante observar que as crianças buscam reconstruir o cotidiano que vivem em casa, como quando ‘interpretam’ a mãe que está longe, e que as deixa na escola para ir trabalhar”, comenta a profissional do Pró-Saber SP, “então elas pensam ‘agora eu sou a mãe, não sou a filha que tem saudade’. Assim, ao longo da experimentação, entendem essa falta, essa saudade que sentem da mãe, e até compreendem os tempos da rotina dela”. 

E por falar em saudade, é fundamental ter em mente o papel do faz de conta nas questões sentimentais da criança.

“Ela revela o que pensa, seus sentimentos e emoções quando brinca dessa forma. É um jeito de se expressar”, aponta Fernanda, “e mais do que nunca, é nesse momento que consegue extravasar. Dar espaço e tempo para isso é um jeito de cuidar da sua saúde emocional”.

O professor-mediador do faz de conta 

A observação atenta, o olhar intencional e a escuta respeitosa norteiam a prática docente na Educação Infantil. Por isso, cabe ao professor atuar como mediador das ações e das brincadeiras.

“Desse modo o educador possibilita a criação de experiências e de convivências, que permitem que as crianças avancem nos seus processos de aprendizagem e de construção de conhecimento”, ressalta a professora e formadora Elaine.

Esse trabalho envolve inúmeras etapas, sendo uma das mais importantes a organização espacial, conforme explica a especialista Gisela. “É papel do professor dar oportunidade para a exploração de objetos, por exemplo. É preciso criar um espaço no qual esse brincar seja possível, com várias estações e ambientes que possam ser explorados e modificados”. 

A professora Elaine detalha possíveis caminhos nessa hora. “Dá para organizar uma variedade de opções, e nem precisam ser brinquedos. Kits de cabeleireiro, com pentes, escovas, bobes, presilhas, espelhos, gel, ajudam as crianças a lidar com os diferentes tipos de cabelo e belezas específicas”, explica.

Outra alternativa, que sempre funcionou para Elaine, e que ganha novos contornos na pandemia, é o kit médico, com a reprodução de seringas, ampolas, caixas de remédio, avental, luvas, máscaras, jalecos e mesmo cadeirinhas compondo uma sala de recepção, com as crianças e bebês (bonecas) de colo simulando a espera pelo atendimento. As fantasias também alimentam o faz de conta – e não apenas as tradicionais e estruturadas, como as de reis e princesas.

“Lá no Pró-Saber SP, oferecemos tecidos, panos para fazer amarração, e acessórios não tão estruturados para que a criança possa criar”, comenta a coordenadora Fernanda. 

O brincar de faz de conta e a BNCC de Educação Infantil 

A BNCC estabelece seis direitos de aprendizagem para bebês e crianças de 0 a 5 anos (Conviver, Brincar, Participar, Explorar, Expressar e Conhecer-se) – e eles podem ser diretamente relacionados ao brincar de faz de conta. A professora Elaine Lindolfo detalha essa correlação:

Conviver:

as brincadeiras de faz de conta se dão por agrupamentos, exercitando a convivência, as relações e interações, que são habilidades sociais importantes da vida em grupo

Brincar:

A oportunidade de brincar colabora no desenvolvimento da própria personalidade e da habilidade de comunicação e interação

Participar:

Aparece bastante no faz de conta, já que a criança se envolve com as brincadeiras e se torna protagonista do processo em si

Explorar:

Enquanto se envolve no jogo simbólico, a criança constrói conceitos, pensa em conhecimentos e tem atitudes de pesquisador ou explorador

Expressar:

Habilidade fundamental, ela é possibilitada pelo faz de conta, seja pela expressão de sentimentos ou pelo aprendizado da linguagem do dia a dia, como brincar de cliente em uma padaria e perguntar: ‘quanto custa?’

Conhecer-se:

Um dos principais dos principais direitos consolidados pelo faz de conta – o de se (re)conhecer, de valorizar e respeitar o outro e de se desenvolver enquanto ser social

Atividades de Educação Infantil: Planejamento alinhados à BNCC

Nesse curso, você conhecerá experiências e sugestões para realizar um planejamento alinhado à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e voltado aos interesses e à perspectiva das crianças da Educação Infantil

O contexto decorrente do ensino remoto desafiou as educadoras, assim como todos os que trabalham com Educação Infantil.

Para não deixar que o faz de conta se perdesse, elas foram unânimes em reforçar o quanto foi essencial consolidar uma parceria com as famílias em meio à pandemia.

“Tivemos que identificar as possibilidades dos familiares em suas casas, observar o que havia disponível, e então oferecer atividades que fizessem sentido”, resume a professora Elaine. Para isso, lançaram mão do WhatsApp e de seus recursos, como listas de transmissão, grupos e mesmo conversas individuais.

“Cada educador enviava conteúdos diariamente, como leituras e vídeos com brincadeiras possíveis para serem feitas com as pessoas que moravam em casa”, recorda Fernanda, do Pró-Saber SP, “mais adiante, conseguimos estabelecer chamadas ao vivo com algumas das crianças; por elas, puxávamos muita brincadeira cantada, parlendas, versos, quadrilhas, músicas rimadas… e essas são brincadeiras verbais que envolvem bastante o faz de conta”. 

Elaine acrescenta que, com sua turma de São Bernardo do Campo e as famílias, estimulou o faz de conta com diferentes perspectivas, entre elas, o olhar para elementos da natureza, como pedrinhas, flores e folhagens, e ainda um trabalho com materiais não estruturados.

“Já tem um certo tempo que pensamos que lidar com objetos do cotidiano possibilita relações muito mais interessantes com a brincadeira, como por exemplo, mexer com panelas, tampas e colheres de verdade”, indica a professora e formadora.

Dá para brincar de faz de conta ‘lavando louça’ em casa, no ensino remoto e com a própria louça – desde que com objetos seguros. “Ao brincar com elementos do seu dia a dia, as crianças elaboram saídas sociais para dilemas e problemas que a humanidade vivencia. E isso é de uma beleza inigualável”, conclui Elaine. 

O mundo da leitura e o faz de conta

Os livros são importantes aliados nesse processo de fortalecer e mediar brincadeiras de faz de conta, mesmo à distância.

Leitura literária de alta qualidade é uma estratégia fundamental para estimular o faz de conta”, destaca a educadora Gisela Wajskop, “especialmente quando os textos servem de apoio para explorar conflitos ou criar cenários que permitam brincar.” 

Entre as muitas obras possíveis e presentes no dia a dia dos professores de Educação Infantil, a professora Elaine Lindolfo selecionou quatro indicações: Bruxa, Bruxa, Venha à Minha Festa (Arden Druce, Editora Brinque-Book), Amoras (Emicida, Editora Companhia das Letrinhas), Sinto o que Sinto e a Incrível História de Asta e Jaser (Lázaro Ramos, Editora Carochinha) e O Caso do Bolinho (Tatiana Belinky, Editora Moderna).