Entenda como planejar brincadeiras com intencionalidade pedagógica
Partir da observação das crianças e ter objetivos bem definidos são pontos importantes para organizar boas experiências na Educação Infantil
POR: Nairim BernardoNa Educação Infantil, as brincadeiras são o meio de as crianças aprenderem e se desenvolverem. São elas que possibilitam que os alunos explorem e conheçam o mundo ao passo que se reconhecem nele. Por isso, essas propostas também devem ser planejadas com intencionalidade pedagógica pelo professor da etapa.
“A intencionalidade pedagógica é revelada nas escolhas, do planejamento à observação. As escolhas são muitas: forma de agrupamento, espaço, tempo, origem dos materiais, quantidade, disposição no espaço. A professora também escolhe qual papel terá: como convida para a atividade, como lança questões, de que ponto e o que observa”, comenta Kelly Cristina dos Santos, mestra em Educação, coordenadora pedagógica na Educação Infantil e formadora de professores, que defende que tudo seja pensado de modo a incentivar o protagonismo das crianças.
Antes de começar a planejar, é importante lembrar quais são os direitos de aprendizagem e desenvolvimento previstos na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): conviver, brincar, participar, explorar, expressar-se e conhecer-se. A intenção da escola deve ser a de promover a garantia desses direitos, o que se efetiva no planejamento das experiências proporcionadas a bebês e crianças.
É essencial planejar experiências significativas para todos, mesmo que apareçam dificuldades ao pensar ou ao executar as propostas. Caso necessário, devem ocorrer adaptações no planejamento, que ficará mais adequado às necessidades de cada criança conforme a professora conhece sua turma.
Para explicar como o planejamento acontece na prática, selecionamos dicas de especialistas e experiências pedagógicas focadas em um tipo de proposta comum na Educação Infantil, a exploração de materiais de largo alcance ou materiais não estruturados. Vale ressaltar que as dicas abaixo podem ser adaptadas para outras atividades.
Escolhas norteiam o planejamento
Segundo Kelly, o primeiro passo do planejamento é a observação das crianças e de seus interesses. “Pensando nos materiais não estruturados, a professora pode observar como as crianças já brincam com eles, que escolhas fazem, como juntam itens e como se agrupam. É interessante fazer breves anotações e registros fotográficos para comparar como as crianças se relacionavam com os materiais antes e depois de uma proposição estruturada pela professora”, diz a formadora.
Depois, é possível escolher um ou mais direitos de desenvolvimento e aprendizagem para trabalhar. Uma mesma proposta pode apresentar vários deles, mas é interessante optar por um foco. Essa escolha também irá determinar o que ofertar e em que local, como dispor os itens para as crianças e como agrupá-las.
“Temos de pensar no objetivo de aprendizagem. Um bom caminho é a professora descrever quais são os objetivos que ela está inserindo na proposta. Uma coisa é você consultar o texto da Base pronto, outra é fazer uma descrição tendo a sua turma como referência”, sugere Maíra Tangerino, coordenadora e consultora de projetos educacionais.
Mais do que conceitos, escolher um objetivo define a prática. Por exemplo, se um dos objetivos for incentivar o conviver, é importante organizar o espaço de modo que seja possível circular com facilidade. Se a intenção for promover uma exploração de elementos da natureza, faz mais sentido organizar uma caixa com pedras, sementes, folhas e galhos do que com sucata.
Se as crianças já tiveram experiências com materiais de largo alcance, na escola ou em casa, é preciso acrescentar elementos novos em cada experiência para manter a curiosidade e ampliar o repertório. Por exemplo: se a professora dispôs vários tipos de tecido para as crianças brincarem espontaneamente e observou que elas começaram a usar esses tecidos no corpo, na próxima vez pode levar outros elementos que conversem com essa prática; se elas usaram os tecidos como capa, retalhos menores podem virar máscaras.
Observação impulsiona a prática
A observação é conhecida como a última etapa da atividade, mas também precisa ser planejada com intencionalidade pedagógica. Enquanto brincam, as crianças podem desempenhar diversas ações físicas, conversar entre si, fazer perguntas à professora e demonstrar curiosidade por elementos que não façam parte da proposta planejada.
Na Educação Infantil, a verdade é simples: é impossível conseguir observar todos os detalhes das descobertas diversas que uma mesma atividade provoca em cada criança. Por isso é preciso escolher por que, como e o que observar.
Assim como uma professora se encanta ao ver seus alunos fazendo novas descobertas todos os dias, também é interessante compartilhar esses momentos com outros funcionários da escola e com as famílias. Ao receber um pedido para que levem potes à escola, por exemplo, os adultos costumam enxergar apenas potes. Porém, se receberem os registros do que as crianças fizeram com eles, entenderão as potencialidades desses materiais não estruturados.
O planejamento não deu certo? A primeira dica de Maíra é: não se frustre. Além das decisões tomadas pela professora, o grupo também faz as suas. A segunda é entender quais fatores geram dificuldade na execução do planejamento.
“Pode ser que por algum motivo externo as crianças estejam inseguras, não queiram brincar. Às vezes, a professora planeja uma atividade para a área externa, chove e a atividade não funciona na área interna. É válido pensar no que depende de você e pode ser mudado na próxima ocasião: escolheu materiais inadequados, não reservou o tempo propício, não prestou atenção no que as crianças estavam demandando? No fim, não existe erro, existe repertório de solução”, comenta Maíra.
Dicas para trabalhar com material de largo alcance na Educação Infantil
Segurança em primeiro lugar
Alguns cuidados básicos são necessários, como observar se objetos de madeira não soltam farpas e se os itens não são muito pequenos, podendo ser engolidos pelas crianças. Os materiais também precisam ser higienizados regularmente.
Considere as diferentes fases do desenvolvimento infantil
Bebês estão passando pela fase oral e levam muitos objetos à boca. Crianças estão desenvolvendo a oralidade e podem trazer muitas falas interessantes para a brincadeira. Essas e outras situações interferem diretamente na experiência e no ponto de observação do professor.
Repita algumas atividades
As crianças já brincaram com caixas há um ou dois anos? Ao repetir a mesma atividade, você e elas poderão perceber como a relação com os mesmos materiais é diferente, afinal elas constroem seu repertório de brincadeiras ao longo do tempo. Aproveite para ampliar os desafios propostos em uma brincadeira com a qual já estão acostumadas.
Experiências inspiradoras
A professora Jaqueline Weiler trabalha com crianças do Jardim 2 no NEI Taquaras, que faz parte da rede municipal de Balneário Camboriú (SC). No espaço de referência, ela mantém cestos organizados de acordo com a categoria dos materiais: elementos naturais, rolos, cones, papéis e tecidos. A depender da atividade que deseja propor, ela escolhe um ou mais cestos para colocar à disposição da turma.
Uma atividade que realiza com frequência ocorre em um espaço externo, com mesas grandes, próximo a áreas com natureza, o que possibilita que as crianças coletem novos materiais para acrescentar ao cesto. A professora e as crianças gostam de realizar a exploração com materiais não estruturados nesse espaço, mas ela explica que a sala também pode ser bem utilizada.
“Já tive turmas com crianças com transtorno do espectro autista e preferi ficar dentro da sala justamente para ter menos estímulo, o que facilitou a adaptação. Se for preciso, podemos tirar as mesas da sala para ganhar espaço”, conta ela. “Ao usar a área externa, também é preciso planejar com intencionalidade, senão as crianças ficam correndo aleatoriamente.” Isso significa fazer sugestões de material, chamar a atenção para elementos que compõem o espaço e as estimular para brincadeiras conhecidas ou ensinar outras.
Jaqueline observou que a boa escolha dos materiais e a disposição interessante deles no espaço são essenciais para atrair a atenção. Ou seja, o trabalho do professor começa antes da chegada das crianças. “Minha intenção é que eles exerçam o protagonismo e a habilidade de investigação porque, diferentemente dos brinquedos prontos, esses materiais podem se transformar em qualquer coisa. Antes de permitir a livre exploração, garanto o espaço para que a brincadeira aconteça”, explica a professora, vencedora do Prêmio Educador Nota 10 em 2022.
Em 2020, a professora Mirtes Ramos dos Santos Melo, da Creche Municipal João Eugênio, no Recife (PE), também foi premiada com o Educador Nota 10 com o projeto Aprendizagem das Crianças: Maravilhamento e Experiências. E quem deu o pontapé para a ideia foram justamente as crianças.
“Estava fazendo um trabalho de modelagem com massinha. Duas crianças foram à lixeira e tiraram as caixinhas vazias. Fiquei intrigada e foquei meu olhar no desejo delas. A partir daí, comecei a observar coisas que já aconteciam com o material e que eu não levava em consideração. Nós guardamos o material estruturado em caixas, e era comum que elas tirassem os brinquedos e brincassem com as caixas”, conta Mirtes.
Os adultos da escola estavam acostumados a colocar as caixas em lugares altos para que as crianças não as virassem, mas Mirtes resolveu fazer diferente: pediu que as educadoras deixassem as caixas ao alcance das crianças e começou a juntar muitas outras.
Ela conta que sempre tem uma intencionalidade, como oferecer menos caixas em um dia para observar como as crianças vão lidar com conflitos e negociações, que histórias são propostas por elas. Por isso, precisa ficar atenta ao fio condutor. “Vi o corpo sendo usado como unidade de medida: será que eu caibo ali? Será que cabe mais um? Quando queriam que outro entrasse, eles encolhiam o corpo; quando não queriam, espalhavam o corpo”, relembra a professora.
“Eu vi caixas se transformarem em bicicleta, casinha, castelo, patinete, carro. Não consigo mais ver uma caixa como apenas uma caixa. As crianças me mostraram que ela pode ser aquilo que sua imaginação mandar”, conclui.
Aprender com os próprios erros
As professoras Jaqueline e Mirtes contam sobre experiências que não deram certo na Educação Infantil ao trabalharem com materiais não estruturados:
“Eu já quis chegar com a caixa definindo que era para fazermos carros. Aí percebi que eu era a única empolgada; as crianças não. O objetivo desses objetos do cotidiano é justamente que elas expressem sua criatividade, ou seja, vir com ideias pré-estabelecidas não condiz com a premissa. Já vi surgirem carros, mas não porque eu impus. Se você tem uma concepção de criança que só faz quando o adulto deixa pré-estabelecido, que só preenche o que já está pronto, atividades de protagonismo e ampliação do repertório simbólico nem vão existir.”
— Jaqueline Weiler
“Antes, eu organizava o espaço, mas não pensava com intencionalidade pedagógica. Eu sabia o que fazer em um primeiro momento, mas não conseguia dar continuidade. Planejava o espaço e os materiais, mas não considerava o interesse das crianças. Estava faltando alguma coisa. E sabemos que o planejamento com intencionalidade pedagógica deve ser pautado no interesse e na necessidade das crianças. A partir do momento que fiz esses elos, foi um caminho sem volta, comecei a aprender com elas.”
— Mirtes Ramos dos Santos Melo
Além das caixas, Mirtes trabalhou também com outros materiais. Conheça mais sobre esse projeto premiado aqui.
Consultoria pedagógica: Paula Sestari, professora da Educação Infantil da rede municipal de ensino de Joinville (SC), com dez anos de experiência nessa etapa, e mestra em Ensino de Ciências, Matemática e Tecnologias.
Esta reportagem faz parte do Especial Intencionalidade e Educação Infantil. Confira aqui os demais conteúdos.
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