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Como trabalhar a oralidade dos alunos no Ensino Fundamental?

Saiba como ensinar, fazer intervenções e apresentar modelos para que os estudantes aprendam a estruturar argumentos, socializar resultados de maneira clara e dialogar de forma respeitosa

POR:
Camila Cecílio
Entenda como planejar, com intencionalidade, atividades que promovam o desenvolvimento da oralidade dos alunos. Foto: Getty Images

Em meados de 2021, quando a professora Ana Karine Bezerra de Lima voltou a dar aulas presenciais para turmas dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, ela percebeu que os impactos da pandemia haviam sido maiores do que o imaginado. Após um ano longe dos alunos, além da adaptação ao modelo híbrido, adotado pela rede de Coruripe (AL) na época, a educadora da EMEB Santa Terezinha teria pela frente a desafiadora missão de recompor as aprendizagens de crianças que mal conseguiram estar presentes nas aulas remotas. 

Não por acaso, um dos maiores prejuízos notados de imediato pela professora foi a comunicação verbal das crianças. Ela conta que muitos alunos voltaram para a escola mais tímidos e reclusos, com dificuldades na fala e para se expressar oralmente. “Alguns estavam até com a ‘voz presa’, com receio de falar o que sentiam, pensavam ou entendiam sobre assuntos abordados em sala, com medo de críticas de outros colegas”, lembra Ana Karine. “Boa parte, inclusive, preferia responder a questões por escrito, e não oralmente, e fazer trabalhos sozinhos.”

Esse cenário não surpreende, já que milhares de estudantes, na maior parte do tempo durante a pandemia, se comunicavam apenas por mensagens de texto. Muitos sequer utilizaram a comunicação escrita, uma vez que não tiveram acesso a computadores ou aparelhos de celular. Com isso, o desenvolvimento da comunicação oral e a prática da oralidade foram dois dos aspectos mais afetados pelo distanciamento provocado pela Covid-19. 

“A maioria dos estudantes brasileiros teve acesso a blocos de atividades impressas e aulas transmitidas pela televisão durante a crise sanitária. Por isso, não vivenciaram momentos oportunos para desenvolver habilidades relacionadas à oralidade, como rodas de conversa e de leitura e a própria troca no dia a dia da sala de aula”, observa Sidecleia dos Anjos, formadora da NOVA ESCOLA e do Instituto Chapada de Educação e Pesquisa (ICEP). “Acontece que essas habilidades são essenciais para o desenvolvimento acadêmico do estudante”, completa.

Desenvolver a oralidade para além da disciplina de Língua Portuguesa

Atividades impressas e aulas pela TV foram os recursos adotados pela rede de Minas Gerais, onde a professora de Língua Portuguesa Adriana Gonçalves e Alves atua. Na época, ela trabalhava em Belo Horizonte e viveu duas realidades distintas, a da escola privada, que tinha aulas remotas, e a da escola pública, em que passou mais de um ano sem ver os estudantes. “Eu fiquei muda, não existia conversação, não existia diálogo porque nós, professores, não participamos da vida escolar dos estudantes. Eles recebiam o material das aulas em casa. Mesmo na escola particular, os alunos não participavam das aulas, mas ainda tínhamos contato. Foi uma época muito difícil”, recorda. 

Kátia Chiaradia, pesquisadora nas áreas de Literatura e Educação e consultora de materiais da NOVA ESCOLA, pontua que muitas redes, durante a pandemia, definiram um currículo prioritário, mas sem privilegiar praticamente nada de oralidade. “As pessoas não estavam no presencial, e, realmente, é difícil trabalhar gêneros da oralidade à distância. Agora, com um ano de retorno ao presencial, há muitas redes que ainda não inseriram habilidades de oralidade nesse currículo prioritário. Por isso, na transição do prioritário para o regular, é muito importante começar por essas habilidades”, afirma. 

Esse é um dos motivos pelos quais a oralidade deve deixar de ser uma pauta específica de Língua Portuguesa, embora prevista na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do componente curricular, e passar a fazer parte do dia a dia das aulas de outras disciplinas. Essa é a orientação de Sidecleia, especialmente neste momento de recomposição de aprendizagens. Ela reforça, ainda, que a evolução da comunicação oral permite o desenvolvimento das competências gerais da BNCC, como comunicação; pensamento científico, crítico e criativo; argumentação; empatia e cooperação; e responsabilidade e cidadania.

Ensinar comunicação oral e trabalhar a prática de oralidade: tem diferença? 

O importante é apoiar o desenvolvimento dos alunos nesses aspectos, sempre respeitando as habilidades individuais

Segundo Kátia Chiaradia, pesquisadora nas áreas de Literatura e Educação e consultora de materiais da NOVA ESCOLA, no Brasil, um país marcado pela oralidade, a expressão “comunicação oral” é polissêmica. Ou seja, tem mais de um sentido e muitas vezes é tomada como a qualidade de alguém que “fala bem”. No contexto escolar, a comunicação oral é um gênero dentro da prática de linguagem da oralidade, conforme a BNCC.

Ela explica que a comunicação oral é bastante próxima daquilo que nas escolas dos Estados Unidos e nas escolas bilíngues do Brasil se chama speech: um gênero em que o estudante se dedica a estudar um tema com certo aprofundamento com o propósito de fazer uma apresentação oral sobre ele. Algumas pessoas consideram que comunicação oral e seminário são a mesma coisa, mas eu entendo que este último prevê interação com a audiência por meio de perguntas, e a comunicação oral, não.”

O eixo da oralidade é uma das quatro práticas de linguagem, de acordo com a BNCC. As outras três são leitura e escuta; produção de textos; e análise linguística e semiótica. Dentro do eixo da oralidade, a BNCC prevê que os estudantes desenvolvam determinadas habilidades. Entre o 8º e o 9º ano, por exemplo, eles devem ser capazes de tecer considerações e formular problematizações em situações de aula, apresentações orais, seminários etc.

O principal ponto do trabalho com a oralidade no Ensino Fundamental, para Kátia, é compreender que a BNCC não pede que os professores transformem seus alunos em oradores, mas sim que apoiem seu desenvolvimento, sempre respeitando suas habilidades pessoais. “Todos terão acesso às mesmas aprendizagens, mas, como ocorre em outros assuntos e objetos de conhecimento, nem todos terão o mesmo desempenho. Algumas crianças serão ótimos oradores, outras serão ótimas avaliadoras de oradores”, ressalta.

Oralidade requer intencionalidade pedagógica

Mas, afinal, o que envolve uma boa comunicação oral? O fato é que falar é tão natural que, muitas vezes, nos esquecemos que existe uma série de aprendizados necessários para se comunicar de maneira eficaz. Kátia diz que o gênero comunicação oral demanda que o estudante se dedique a falar e a ter uma boa pronúncia, mas isso é apenas um aspecto. De acordo com a especialista, é importante também ter uma boa postura corporal, uma fala pausada e uma boa gesticulação (sem exageros). 

“Conheço pessoas com alguma dificuldade de fala, como a chamada língua presa, que são ótimos oradores. Para citar alguém conhecido, o próprio presidente Lula tem uma dicção comprometida, mas segura bem sua audiência em outros aspectos”, comenta.  

Para Sidecleia, trabalhar a oralidade também requer intencionalidade pedagógica do professor. “Ele não pode abrir rodas de conversa sem antes ter clareza de seus objetivos. Durante a atividade, é possível que os estudantes se posicionem de forma desrespeitosa diante da fala do colega, que falem muito baixo ou mais alto, e que não respeitem os turnos de fala e interrompam os outros. Se o professor tem bem definidos o que quer ensinar, vai conseguir pensar em boas intervenções durante a discussão”, salienta. “A gente não nasce sabendo essas coisas, a gente aprende porque alguém ensina, fazendo as intervenções necessárias.”

Protagonismo dos estudantes e construção de argumentos

Ao desenvolver o trabalho com a oralidade, é fundamental planejar práticas que coloquem o aluno como protagonista do seu processo de aprendizagem. Por exemplo, se o professor for abordar os problemas causados pelo lixo, uma boa dica é, em vez de dar uma “aula corrida” sobre o assunto, perguntar aos estudantes quais problemas eles conseguem perceber, em seus respectivos entornos, que têm relação com o lixo que produzimos em casa. Assim, eles mesmos vão começar a falar a respeito daquilo que veem. 

O professor pode trazer textos de apoio, vídeos e palestras para ajudar os alunos a construir argumentos que comprovem que precisamos nos reeducar em relação à produção de lixo. “Assim, a centralidade sai do papel do professor e vai para o aluno, de modo que ele ocupe um lugar de fala”, afirma Sidecleia. No final dessa sequência de aulas, os estudantes podem apresentar o resultado da pesquisa, seja em sala ou para outra turma, tendo em vista que precisam construir, em termos de comunicação oral, uma fala pautada em bons argumentos.

A mesma ideia vale para um debate ou seminário. “Ao abordar a Guerra Fria, por exemplo, posso propor como produto do estudo que os alunos apresentem um seminário, que tanto serve para guiar as aprendizagens de forma mais significativa, como para avaliar as aprendizagens. Mas, para isso, é preciso possibilitar que aprendam como fazer esse tipo de apresentação”, descreve Sidecleia. Para garantir o protagonismo, em vez de dar uma aula expositiva sobre o tema, um caminho interessante é começar com uma questão problematizadora e propor situações que exijam que os alunos pesquisem para se aprofundar no assunto. Assim, ela atua como mediadora, tomando notas e fazendo as intervenções conforme necessário.

Junto a isso, há ainda a organização do seminário em si. Se a turma ainda não sabe como fazê-lo, o professor precisa reservar um tempo da sequência didática para ensiná-los e, em seguida, ensaiar para esse momento. Desta forma, os alunos vão construindo uma lista do que precisam garantir na apresentação do seminário. 

“Uma coisa muito importante é que a comunicação oral é um objeto de ensino”, diz Sidecleia. “Então, é preciso ensinar, fazer intervenções, apresentar modelos. Se eu quero que os meninos participem de um sarau, não dá para declamar poemas sem saber como fazer isso. Eles precisam de referência para entender como se faz, e o professor deve garantir esse momento em seu planejamento.”

Apresentações orais e trabalhos em grupo

É com base nesses elementos citados por Sidecleia que a professora Ana Karine tem adotado práticas pedagógicas para desenvolver a oralidade de seus alunos do 5º ano durante a recomposição de aprendizagens. Na Semana do Livro, ela selecionou algumas obras de Monteiro Lobato, de gêneros variados, e levou para a sala de aula. O primeiro passo foi dividir a turma em pequenos grupos para favorecer a interação. Em seguida, cada equipe escolheu uma obra para trabalhar, a princípio, aspectos como leitura e interpretação de texto. Depois, ela propôs aos estudantes que produzissem por escrito um novo final para as histórias. A última etapa da sequência didática foi a apresentação oral dos desfechos escritos por eles.

Embora o objetivo final, fazer com que os alunos se expressassem oralmente, tenha sido alcançado, Ana Karine conta que enfrentou algumas dificuldades durante a realização da proposta. “Percebi que foi um desafio para as crianças colocarem as ideias no papel e mais ainda apresentá-las para o restante da turma. Elas estavam muito tímidas, envergonhadas e com medo de que os colegas não achassem a produção legal. Então, era um receio muito grande de falar em público.”
Ao constatar as dificuldades dos estudantes, a educadora encontrou uma solução para que eles ficassem mais à vontade. Além de elogiar as produções e incentivá-los, Ana Karine adotou um dado interativo, um jogo dinâmico para que todos pudessem participar da atividade. Quando o dado girava com perguntas gerais sobre as obras, cada grupo ia fazendo a sua pontuação, de acordo com sua produção. “Ao final da aula, todo mundo interagiu, e não foi uma apresentação longa e cansativa. Todos conseguiram apresentar e observar a opinião de cada um, inclusive se interessando pelos trabalhos dos colegas. Foi uma proposta muito interessante, e os resultados foram ótimos porque eles ganharam mais autoconfiança”, resume.

A importância da comunicação não violenta

Ensinar a dialogar de forma respeitosa e a desenvolver a escuta são aspectos essenciais do trabalho com a oralidade 

Além de uma boa comunicação oral, é importante que as crianças saibam dialogar de forma empática, escutando e respeitando os colegas. Por isso, levar em consideração conceitos da comunicação não violenta é um dos principais pontos do trabalho com a oralidade. “A comunicação violenta não acontece porque a pessoa quer ser violenta, é porque ela não sabe ter uma comunicação respeitosa. Então, ela precisa ser ensinada”, destaca Sidecleia dos Anjos. 

Mas como fazer isso? De acordo com ela, é necessário definir com os estudantes princípios para os momentos de diálogo. Por exemplo, ao fazer uma roda de notícias, atividade que aparece muito nos planos de aula, é preciso fazer alguns combinados com os alunos para que tudo corra bem. “O professor pode perguntar: ‘Como temos de nos comportar nesse momento da roda de notícias? Podemos falar todos juntos? Como vamos fazer para saber quem vai falar de cada vez?”, detalha. “È preciso ter um processo de combinar e ensinar a pedir a palavra, não interromper o outro, respeitar o tempo de fala e ir exercitando isso.”

Reconto literário e relatos pessoais

Em Santo Antônio do Monte (MG), a professora Adriana desenvolve um trabalho nessa linha com seus alunos do 7º ano da EE Padre Paulo. A educadora tem apostado em dois projetos para colaborar com o desenvolvimento da oralidade dos estudantes. 

Como na proposta da professora Ana Karine, no Reconto Literário de Adriana, os alunos escolhem um livro mensalmente e o leem. Na data marcada, cada um reconta a sua obra. A única regra é que não pode ter um resumo escrito, no máximo um roteiro para que eles não se percam. “Esse projeto eu faço há anos. O mais bacana é que eles mesmos ficam cobrando a data do próximo reconto, já antecipando suas leituras. Insisto para que seja oral, pois percebo que os alunos ficam muito mais envolvidos”, conta. 

O outro projeto, chamado Relatos Pessoais, também é realizado por Adriana há tempos, sempre com turmas de 7º ano, e é desenvolvido em cerca de seis aulas. A primeira é inteiramente dedicada à contação de histórias pessoais e engraçadas sobre coisas que aconteceram com a professora, o que, segundo ela, prende a atenção dos alunos. Depois, ela pede como lição de casa que cada um pense em uma história interessante que viveu e que gostaria de compartilhar com os demais. 

Na segunda aula, é a vez de os alunos contarem os seus causos. Com os relatos escritos, a professora faz um sorteio pelo número da chamada para saber quem vai falar. No terceiro momento, Adriana vai para a lousa para abordar o conceito e as características de um relato pessoal. Já na quarta aula, ela usa como exemplos o diário de bordo do explorador brasileiro Amyr Klink e obras como O diário de Zlata e O diário de Anne Frank. Nessa etapa, a leitura também faz parte da proposta didática. Na quinta ou sexta aula, é o momento de avaliação, em que a professora leva um relato impresso, com questões de interpretação de texto para os alunos responderem. 

“Um dos maiores ganhos desse projeto é a aproximação com os estudantes, pois eles sentem abertura para falar de várias passagens interessantes de suas vidas. Talvez, se não fosse o relato pessoal, eu não teria a comunhão que tenho hoje com meus alunos. E isso faz toda diferença, ainda mais neste momento pós-pandemia”, finaliza Adriana.

Outras dicas para trabalhar a oralidade

  • Defina as habilidades da comunicação oral que os alunos devem desenvolver, tendo clareza de que precisam ser ensinadas.
  • Explicite para a turma os propósitos da situação comunicativa oral da qual vão participar, para que eles tenham um objetivo social claro.
  • Estabeleça regras, junto com os estudantes, para guiar a participação de todos.
  • Observe os alunos e faça intervenções pontuais para ajudá-los a se apropriar das habilidades pretendidas.
  • Ofereça modelos, sempre que possível, da situação comunicativa da qual irão participar, analisando juntos e discutindo sobre como as pessoas se comportam nessa situação (tom de voz, tipo de perguntas, turno de falas etc.).
  • Tenha sempre a BNCC como documento norteador, pois nela há muitos gêneros da oralidade [conversas, seminários, podcasts, cantigas etc.] e todos merecem estar na sala de aula.

Consultoria pedagógica: Sidecleia dos Anjos, educadora e membro do Time de Formadores da NOVA ESCOLA.

Esta reportagem faz parte do Especial Estratégias de Aprendizagem. Confira aqui os demais conteúdos.

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