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Caminhos para aproximar as meninas do futebol

Propor reflexões sobre a desigualdade de gênero e estimular a prática do esporte são maneiras de aproveitar eventos esportivos na escola

POR:
Paula Salas
Meninas assistem ao jogo de estreia da seleção brasileira de futebol feminino contra o Panamá, na Copa do Mundo 2023. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

É do Brasil! Ary Borges, meio-campista da seleção feminina de futebol, marcou o terceiro gol na partida de estreia contra o Panamá, na Copa do Mundo Feminina 2023. Fim de jogo. Vitória do Brasil com placar de 4 a 0. 

Torcer e se emocionar ao ver o seu time brilhando não tem preço. Observar mulheres nessa posição de prestígio é uma ótima oportunidade para despertar o interesse das alunas pelo esporte. “Desde cedo, os meninos têm uma educação corporal diferenciada, compreendem de futebol mais do que as meninas, mas não podemos naturalizar [essa situação]. Não é biológico, é social. Por isso, é um momento especial para dar visibilidade, falar de futebol com todos, brincar com a bola”, afirma Simone Cecilia Fernandes, professora de Educação Física na EMEFEI Raul Pila, em Campinas (SP).

Copa do Mundo Feminina e desigualdade de gênero no futebol

Essa desigualdade de gênero observada por Simone é produto do histórico de marginalização das mulheres na sociedade. “Até 1979, existiam leis que proibiam as mulheres de jogar futebol. Então, temos hoje professoras de Educação Física que não vivenciaram o futebol como prática corporal porque era proibido que elas praticassem”, diz Helena Altmann, docente na Faculdade de Educação Física e no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 

Esse é o caso de Rosalina de Lázaro, professora de Educação Física na EE José dos Santos, em Aspásia (SP). “Quando fiz faculdade [

na década de 1980], na hora do futebol dos meninos, a gente ia para a ginástica”, conta. “Na escola, as mulheres só davam aulas para as meninas e não podiam nem cogitar futebol.”

A conquista pelo direito de jogar é recente. Atualmente, não existem restrições legais, porém, culturalmente, a mudança está em andamento. Isso é perceptível, ainda hoje, quando há uma grande diferença de visibilidade, reconhecimento financeiro, patrocínio, cobertura midiática e até de espaço na televisão aberta para exibição de esportes praticados por mulheres. 

“Nossa responsabilidade como professores de Educação Física é garantir que as novas gerações tenham acesso às diferentes culturas corporais, entre elas, o futebol, e buscar formas de propiciar isso de forma mais equitativa”, ressalta Helena. 

Desde os anos 2000, Rosalina começou a estimular a prática de futebol para todos, indo contra os padrões. “Eu via as alunas interessadas e achava injusto elas ficarem de fora. Era uma coisa que eu tinha de fazer. Depois, quanto mais trabalhava, mais meninas se interessavam.”
Porém, não foi uma missão fácil. “No começo, vinham mães para dizer que não queriam deixar as filhas fazerem as aulas. [Hoje] a cultura e o preconceito estão mudando”, relata a professora. Helena destaca o papel central de um evento com a magnitude da Copa para informar as famílias e superar a ideia de que este ou aquele esporte não é para todos.

Estratégias para incentivar a prática do futebol no ambiente escolar

“Se colocar a bola no pé das meninas desde o 2º ano, quando elas chegarem no 6º ano, elas não terão medo. Por isso, eu incentivo desde cedo a chutar, fazer drible, treinar e, aos poucos, vão pegando [o jeito]”, comenta Rosalina. Os desafios começam pequenos e vão aumentando conforme ganham confiança –  isso vale tanto para todos, não só apenas as meninas. 

Desenvolver a destreza necessária para o futebol não surge de uma hora para a outra. É preciso ter paciência, especialmente para quem não está acostumado. Por isso, garantir um discurso de incentivo é importante. "Tem que acreditar, apoiar com palavras de estímulo, [falar] que ela(e) consegue, para não desistir", completa Simone. 

Promover um espaço seguro e de respeito também é fundamental para não afastar as alunas. “Não adianta colocar as meninas para jogar se as deixo expostas a discursos de ódio. Elas têm de encontrar acolhimento”, diz Osmar de Souza Jr., professor no Departamento de Educação Física e Motricidade Humana da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). “Se elas se sentiram amedrontadas, [o professor deve] pensar: como é esse espaço? É um ambiente em que ela está o tempo todo com medo de errar, de ser xingada? Se sim, tem muita coisa para ser trabalhada.” 

Sugestões para aproveitar eventos esportivos como a Copa do Mundo Feminina na escola

Assim como é feito durante as Copas masculinas, as escolas podem realizar projetos sobre o tema para as turmas conhecerem os países participantes, as jogadoras e o que mudou na história do futebol feminino, por exemplo. Para isso, especialistas sugerem sempre dar visibilidade e garantir o protagonismo das meninas e mulheres e apostar no diálogo. Veja a seguir alguns caminhos: 

Inserir novas regras no jogo

Explorar dinâmicas distintas de um jogo tradicional pode despertar discussões a respeito de outras desigualdades de gênero na sociedade. 

“Tem um jogo em que o Osmar propõe que meninos e meninas ocupem posições distintas na partida. Então, enquanto os meninos jogam no ataque, as meninas não podem sair do campo de defesa. Depois, elas podem sair, mas têm que voltar e fazer as duas tarefas”, descreve Helena. ”Ao final, constrói-se uma reflexão para transpor essa vivência para as desigualdades da vida real. Por exemplo, a ideia de que a menina só pode jogar na defesa simboliza que ela teria que ser aquela que cuida das tarefas domésticas, sem poder ocupar outros espaços.”

Esse jogo é chamado de futebol generificado. O professor Osmar explica como funciona no vídeo abaixo. 

 

Semelhante a essa proposta, Rosalina sugere o que ela chama de “jogos de cinco minutos”. Durante esse período, valem diferentes regras. Por exemplo, apenas os gols das meninas são contados (e vice-versa). "Dá super certo, porque nos minutos em que só elas podem fazer gol, os meninos são obrigados a passar a bola para elas”, comenta. Também podem ser utilizadas outras estratégias, como propor que eles joguem de mãos dadas em duplas mistas, o que também estimula a cooperação entre os colegas. 

Jogar futebol de botão de mulheres

Outra sugestão de Osmar é resgatar esse jogo da cultura popular. Dessa forma, o professor apresenta (caso a turma não conheça) as regras de como jogar e a história da brincadeira. A turma pode confeccionar os times utilizando jogadoras e seleções que estão participando da Copa. 

Experimentar o fútbol callejero (futebol de rua, em tradução livre)

A metodologia do fútbol callejero surgiu dos movimentos populares da Argentina. “É um jogo em três tempos. No primeiro, o grupo constrói as regras do jogo. No segundo, joga. No terceiro, discute-se o jogo com base em três pilares: respeito, solidariedade e cooperação”, detalha Osmar. 

“O que se fala é muito importante. As palavras ficam gravadas, a discussão do preconceito, dos estereótipos. Tem que conversar para desmistificar esse conceito de que mulher é delicada”, complementa Rosalina.

Garantir tempo e espaço para o esporte

Durante todo o ano, é fundamental garantir que as meninas também tenham espaço para praticar o esporte e organizar jogos mistos e interclasses mistos (ou um campeonato das alunas). 

Enquanto a Copa estiver acontecendo, isso inclui reunir a escola para assistir aos jogos, quando possível – considerando que, diferente da Copa masculina, os dias de jogos do Brasil não se tornaram ponto facultativo em todo o país. Ou seja, destacar a importância daquele momento. 

Estudar a história do futebol feminino

“Contar a história de mulheres que foram protagonistas é muito importante”, aponta Osmar. Então, quando for falar de futebol, não destacar apenas o Ronaldinho, mas falar de Marta, Formiga, Mia Hamm, entre outras grandes atletas. 

Mas é importante ter cuidado com “falsos elogios” ao fazer comparações como “fulana é o Neymar [insira aqui qualquer outro nome de grande jogador] do futebol feminino”, pois é uma forma de reforçar que a régua de comparação é sempre baseada nos homens, que alguém se destaca por ser “equivalente” a um homem. 

Além de resgatar a historiografia e estudos sobre o tema, o professor pode propor que os alunos façam uma pesquisa com as famílias para saber como era para as mulheres jogarem futebol na época das mães, tias, avós etc. 

Como despertar o interesse das turmas de Anos Iniciais pela Copa do Mundo Feminina

Turma da professora Simone elabora cartaz com fotos das jogadoras da seleção para registrar o placar dos jogos. Foto: Simone Cecília Fernandes/Acervo pessoal

Na escola em que a professora Simone atua, o dia de volta às aulas após as férias do meio do ano, já foi marcado pelo primeiro jogo do Brasil, descrito no início deste texto. Ela aproveitou para poder assistir à partida com as crianças do 4º ano. “Apresentei as jogadoras [da seleção brasileira] e suas posições. Foi bonito ver todo mundo torcendo”, lembra. Para apoiar esse trabalho, a professora organizou um pequeno álbum de figurinhas do time brasileiro. 

Depois do momento de troca e conversa, a turma de Simone foi para a prática. A professora organizou jogos mistos e dividiu as crianças em quatro times, dois com quem já sabe jogar e dois com iniciantes. “A diferença de saberes causa uma dominação, por isso [ao separar] quem nunca jogou se sente mais à vontade”, considera. Conforme os alunos avançam, eles podem transitar entre as equipes. 

Simone aproveitou essa atividade para fazer um diagnóstico. Com base em suas observações, para as próximas aulas, ela irá planejar jogos reduzidos com times de três para facilitar a aprendizagem, para que entendam as técnicas e as regras conforme jogam. Além do momento em quadra, a professora salienta a importância de ter espaço para conversas. “[É preciso] refletir sobre os direitos, o acesso às práticas corporais e que os meninos entendam seus privilégios e o respeito ao direito de aprendizado de todos. Tem que haver engajamento e reflexão para que possam aprender. Temos muito diálogo para que as aulas possam acontecer”.

O trabalho também pode ir além das aulas de Educação Física e, quando possível, fazer uma parceria com o professor polivalente para potencializar as aprendizagens. “Hoje temos um acervo de literatura infantojuvenil que aborda o tema em uma linguagem adequada, de forma reflexiva”, exemplifica Helena. A escrita dos países e nomes das jogadoras podem ser utilizados para avançar na leitura e escrita. 

Já nas aulas de Matemática, podem ser trabalhadas, por exemplo, situações-problema temáticas. Neste texto sobre a Copa do Mundo de 2022, a professora Selene Coletti traz outras sugestões para aproveitar a competição para desenvolver a alfabetização matemática.

Como levar a temática para os Anos Finais do Fundamental

Nessa etapa do ensino, o primeiro passo, segundo a professora Rosalina, é aproximar os alunos da história do futebol feminino. Todas as turmas dos Anos Finais fazem uma pesquisa sobre o tema. Em seguida, preparam um quiz a respeito do que descobriram para testar os conhecimentos dos colegas.

Em paralelo, claro, vão para a prática. Rosalina planeja organizar um campeonato de futebol de campo interclasse apenas com as meninas – geralmente, esses torneios acontecem com times mistos. “O interesse pelo futebol contribui para vivenciar de forma prática aprendizagens de questões técnicas e táticas do esporte", aponta Helena. Isso inclui, segundo a especialista, saber lidar com a vitória e derrota. 

Os projetos de Rosalina também envolvem frequentemente os demais professores das áreas de Linguagens e Ciências Humanas. 

Nas aulas de História e Geografia, os estudantes têm a oportunidade de discutir o avanço da mulher no esporte e na sociedade. Um caminho sugerido por Osmar é estudar os países que estão participando da competição e propor que os alunos pesquisem registros e relatos ligados ao momento histórico em que as mulheres eram proibidas de jogar futebol. 

Já as aulas de Língua Portuguesa são dedicadas a estudar textos jornalísticos – ideia que também pode ser adaptada para os Anos Iniciais. "Quando organizamos um campeonato, os alunos fazem a cobertura jornalística", conta Rosalina. Dessa forma, alguns estudantes fazem a narração do jogo e são comentaristas, enquanto outros fotografam e escrevem a notícia. Em campo, os alunos também são responsáveis pela arbitragem. 

“São muitos aprendizados. O primeiro é o respeito, não discriminar, incluir todas as pessoas nos esportes”, afirma a professora. “Da parte curricular, vão aprender com as pesquisas, a elaboração dos textos, o uso da tecnologia e com o trabalho durante o jogo. Também tem o desenvolvimento das capacidades físicas [para jogar] e o tipo de alimentação que eles precisam”, completa.

Futebol feminino ou futebol de mulheres: qual termo utilizar? 

Existe uma discussão sobre não utilizar o termo futebol feminino e substituí-lo por futebol de mulheres. “É uma opção para afirmar que é futebol, não é algo diferente, menor ou pior”, explica Osmar. 

Nesta reportagem optamos pelo uso do termo que ainda é mais frequente, conhecido e que atualmente é utilizado nas denominações das competições oficiais. Porém, é importante saber que existe a discussão de nomenclatura entre os especialistas – e pode ser que daqui há alguns anos isso mude. 

*Texto publicado em 28/07/2023 e atualizado em 23/07/2024.

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