Mulheres negras que fizeram história e vão enriquecer suas aulas
Ampliar o repertório da turma com histórias de mulheres negras, muitas vezes invisibilizadas, pode garantir diversidade e despertar o olhar crítico dos alunos
POR: Lavini CastroCaros colegas, neste Mês das Mulheres, sugiro um desafio: indague seus alunos sobre mulheres negras que tenham uma história de luta e resistência de grande repercussão social e cultural em nosso país. Observe se as respostas surgem com rapidez, se eles já têm na ponta da língua algo para contar, se lembram de nomes de mulheres negras e seus legados, ou se há um silêncio, enquanto tentam buscar na memória algum indício de resposta para o que foi questionado.
Provavelmente, as mulheres negras de destaque mais próximas deles são suas mães, tias, irmãs, trabalhadoras e funcionárias que, em outras medidas, também promovem seus legados, diga-se de passagem! Por outro lado, quantas você, professor, pode elencar?
Sempre me pergunto o que teria promovido o apagamento de nossas memórias das histórias de mulheres tão potentes como Dandara dos Palmares, Esperança Garcia, Laudelina Campos Mello, Maria Felipa, Maria Firmina dos Reis, Tereza de Benguela e tantas outras.
Uma coisa sabemos, o Brasil tem um problema de memória. No entanto, quando olhamos com mais atenção, percebemos que esse problema é seletivo e atinge mais algumas histórias específicas, descortinando uma questão racial. Cabe a pergunta: por que os elementos da história e cultura afro-brasileira e africana não se concretizaram como um ponto de referência na memória para a coletividade afro-brasileira? Ou seja, por que é tão difícil, tanto para adultos como para crianças e jovens, acionarem referências de negritude em situações positivas?
Aprendemos a não ver, a não sentir, a não valorizar a presença de personalidades negras. Isso ocorre porque às negras e aos negros foi imposta uma longa história de silêncio ou uma história única mal contada. Grada Kilomba (2019), nos fala de uma história de “línguas interrompidas, idiomas impostos, discursos impedidos” e, portanto, de histórias não contadas, ou contadas a interesse daqueles que tinham poder e restringiram nossas percepções ao valor das pluralidades.
Hoje em dia, na música e nos esportes, principalmente no futebol, temos a possibilidade de resgatar melhores situações (sociais e econômicas) para os negros. Contudo, ainda assim, notamos uma seletividade, uma representatividade de poucos negros nesses setores e o pior é a demarcação de que somente nessas áreas os negros podem tentar alguma carreira de sucesso; sendo esse o entendimento, criamos mais um estereótipo de que ao negro só resta o setor musical e esportivo.
Questões raciais e de gênero no Brasil
A coisa toda é ainda pior para mulheres negras, pois, no Brasil, identificamos não só um problema referente às questões raciais, mas também de gênero. No país, segundo Jaqueline Gomes de Jesus (2020), “mulheres, principalmente as negras, nem sempre puderam falar, escrever e quanto mais publicar sobre si mesmas”.
Essa carência não é algo que deva ser naturalizado. Pessoas negras realizam diversas ações em suas existências, contribuindo para a história e diversidade cultural de nossa sociedade, o problema é que essas ações não encontram um amplo espaço de divulgação.
A sociedade e seu pensamento patriarcal e racista vê a mulher negra, socialmente confinada a uma posição de marginalidade e silêncio dentro de um regime de repressão racial, e se ela também se vê assim, pode se emudecer ou ser emudecida. É preciso mudar o foco e o conceito, e a sala de aula pode ser testemunha de novas maneiras de conhecer a história brasileira, uma história que contempla a narrativa de mulheres negras.
Sala de aula e resgate das histórias negras
Segundo Nora (1993), em Lugares de Memória, há para cada grupo um ponto de referência para acionar a memória. Tais pontos de referência seriam os monumentos que formam os lugares de memória como, por exemplo, o patrimônio arquitetônico, as paisagens e datas, os personagens, as tradições e os costumes de uma sociedade. Quais seriam os pontos de referência ou os lugares de memória que valorizam as histórias e culturas afro-brasileiras, em especial as histórias e existências de mulheres negras?
O que sabemos é que pessoas negras perderam o vínculo com sua história de resistência e suas culturas em razão da diáspora e imposição cultural. Por outro lado, os brancos também não criaram vínculo porque historicamente a cultura de base africana foi identificada como cultura inferior, sendo menosprezada, enquanto a cultura de demarcação europeia, portanto branca, foi exaltada. Isso resultou na formação de uma memória negativa em relação à cultura africana e, posteriormente, afro-brasileira, ou a perda de memória propriamente dita, por parte de alguns na sociedade brasileira.
Como brasileiros conscientes das nossas perdas culturais e históricas, precisamos resgatar nossa memória. Nem sempre por meio da comemoração traremos indícios da pluralidade. Muitas vezes, teremos que caminhar por uma lembrança de dor ou de resistência para falarmos da presença negra em diáspora pelo mundo.
Todavia, a educação pode ser um lugar de acalento para a reconstrução de uma memória afetiva do brasileiro com os elementos da negritude. Na sala de aula, podemos reconstruir narrativas históricas, podemos evidenciar histórias silenciadas e ensinar valor à pluralidade cultural que existe em nossa sociedade para comemorarmos uma nova cultura com ênfase na diversidade. Porque narrar é demarcar uma passagem histórica, e narrar histórias de mulheres negras não só demarca suas trajetórias como também transforma nosso olhar e entendimento do lugar dessas mulheres, suas existências e contribuições.
Mulheres negras esquecidas ou objetificadas pela história oficial podem ganhar vida por meio de nossas aulas ao serem reverenciadas e, assim, nossas memórias irão reconhecê-las como sujeitos históricos.
Por tudo isso, te convido a pesquisar e conhecer histórias de mulheres negras potentes e seus legados para a sociedade brasileira. E que tal fazer uma aula incentivando suas alunas e alunos a conhecerem essas mulheres? É possível levar a história delas para diferentes componentes curriculares e de diversas maneiras.
Um trabalho inspirador é o livro Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis, de Jarid Arraes. Por que não fazer um trabalho de pesquisa com a turma e incentivar a escrita de cordéis contando a história de mulheres negras? Eles também podem confeccionar murais, criar apresentações e até blogs que podem ser compartilhados com toda a escola.
Aqui, trago algumas sugestões de nomes para colaborar com esse reavivamento ou, se for o caso, construção de novas memórias:
Antonieta de Barros
Nasceu em Florianópolis no ano de 1901. Sua trajetória de vida é marcada pela docência, carreira política e pelo jornalismo. Antonieta é lembrada por ter sido a primeira mulher a assumir um cargo político, sendo deputada estadual em 1934. Sua principal bandeira foi lutar por uma educação de qualidade e seu desejo era erradicar o analfabetismo. Sua história nos conta sobre persistência, poder e direitos de equidade, em que ela coloca a educação como uma brecha para quebrar o sistema educacional ainda muito exclusivo. Antonieta fundou, em 1922, um Curso de Alfabetização gratuito além de ser autora do projeto de lei que instituiu o feriado escolar do Dia do Professor, em Santa Catarina, mais tarde oficializado como nacional. Além de lecionar, ela atuou no jornal A Semana que ela mesma fundou entre os anos de 1922 a 1927. O jornal era o seu canal de conscientização contra a discriminação racial.
Aqualtune
Eu não duvido da linhagem real de Aqualtune. Ela foi uma princesa, guerreira e estrategista de um dos reinos da região do Congo. Sua história nos fala sobre coragem e resistência. Conta a história que ela teria liderado um exército de 10 mil homens na Batalha de Mbwuila (Ambuíla) contra a invasão de seu reino no ano de 1665. Quando perdeu a guerra, foi trazida como escravizada para o Brasil. Aqui, ela é lembrada como a avó de Zumbi. Ao chegar no Brasil, Aqualtune teria sido vendida para ser uma escrava reprodutora, mas assim que conseguiu, fugiu grávida de Ganga Zumba para onde, hoje, conhecemos ter sido o local do quilombo de Palmares.
Carolina Maria de Jesus
Uma mineira da cidade de Sacramento, nascida no ano de 1914. Carolina Maria de Jesus é reconhecida como uma importante escritora brasileira. Sua história nos conta sobre liberdade, dedicação e criatividade - eu prefiro não focar na dor. Foi gênia da literatura, com uma escrita singular, que contava sobre sua vida, e seu dia a dia na favela. Sua escrita apresenta suas vivências e provoca nossas alunas e alunos sobre como o ato de escrever nos torna sujeitos de nossas histórias. Sua escrita, com toda certeza, é um ato político, em que uma mulher negra, em vez de ser descrita como um objeto ou ser ignorada pela história, torna-se protagonista.
Luiza Mahin
Da Costa da Mina veio escravizada para o Brasil e virou quituteira. Ela participou da Revolta do Malês (1835), na Bahia, repassando bilhetes informativos sobre a revolta em seus quitutes. Há muitas indagações sobre seu paradeiro após esse episódio, mas acredita-se que posteriormente tenha participado da Sabinada (1837). As fontes falam de sua fuga para o Rio de Janeiro e, de lá, não se sabe se retornou para Angola ou se instalou no Maranhão, sendo responsável por ajudar a disseminar o Tambor de Crioula. O que sabemos é da magnitude de sua história. Tanto é que seu filho, Luiz Gama, a definia como uma mulher inteligente e rebelde. Em seus escritos, ele dizia que era filho natural de uma negra africana, livre, da nação nagô, de nome Luiza Mahin, pagã e que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. A descreveu como baixa, magra, bonita, a cor de um preto retinto, sem lustro, e dentes alvíssimos, além de altiva, generosa, sofrida e vingativa.
Tia Ciata
Tia Ciata, como era conhecida Hilária Batista de Almeida, era uma mulher baiana, nascida em Santo Amaro (BA) no ano de 1854, mas sua vida adulta ocorreu no Rio de Janeiro. Seu legado está presente nas tradições culturais do samba e da religião de matriz africana. Era, como dizem nossas alunas e alunos, “cria” da Pedra do Sal e depois da Cidade Nova, isso lá pelo final do século XIX e início do século XX. Sua atuação na disseminação do samba carioca lhe rendeu a homenagem de primeira dama das comunidades negras da Pequena África.
No período em que viveu Tia Ciata, a cultura afro-brasileira não era bem vista e havia muita perseguição a sambistas e adeptos das religiões de matrizes africanas. Porém, ela passou a ter bom trânsito na política quando foi chamada para curar uma ferida na perna do Presidente Venceslau Brás e conseguiu livrá-lo do problema. Como gratidão, o presidente passou a proteger os eventos em que Tia Ciata estava envolvida, garantindo mais espaço de propagação para o samba. Tia Ciata faleceu em 1924, mas até hoje é lembrada por sua persistência e amor pela cultura do samba e religiosidade de matriz africana.
Então, professor, que tal perguntar a suas alunas e alunos sobre mulheres negras heroínas e continuar essa proposta de contação de histórias?
Lavini Castro é educadora antirracista. Doutoranda em História Comparada pelo PPGHC/UFRJ. Mestre em Relações Étnico Raciais pelo PPRE/CEFET-RJ. Historiadora pela UFRJ. Professora de História do Ensino Fundamental e Ensino Médio das redes pública e particular do estado do Rio de Janeiro. Idealizadora e coordenadora da Rede de Professores Antirracistas. Ganhadora do Prêmio Sim à Igualdade Racial do ID_BR em 2021.
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