Como o espaço físico da escola pode estar alinhado à Educação Antirracista?
O ambiente, as referências visuais e os materiais pedagógicos precisam refletir a valorização da diversidade e da equidade
POR: Carol FirminoNa escola, tão importante quanto garantir o discurso antirracista é o ambiente mostrar a valorização da diversidade, seja nas imagens decorativas da sala de aula, nos brinquedos e livros disponíveis aos alunos, seja na presença de professores e estudantes pretos e indígenas.
A Educação Antirracista deve ir além do discurso, pois ela demanda uma integração profunda entre o que é ensinado aos alunos e o ambiente onde esse processo ocorre. Nesse sentido, o espaço escolar e tudo o que o compõe se tornam parte importante do aprendizado.
Não basta, por exemplo, o professor falar sobre a importância da literatura afrobrasileira, se os cartazes nas paredes mostram apenas escritores brancos. Ou ainda abordar a valorização da diversidade, se as crianças não têm à disposição bonecas negras para brincar. Essa distância entre o que se diz e o que se mostra contribui para perpetuar estereótipos.
Diante disso, os gestores e educadores devem se questionar sobre o que as salas de aula e todo o espaço da sua escola comunicam: eles estão alinhados à Educação Antirracista? As referências visuais e os materiais disponíveis no ambiente escolar reforçam de fato a inclusão, a igualdade e o respeito às diferenças? É preciso alinhar discurso, ações e referências imagéticas para que se tenha, verdadeiramente, uma escola com práticas antirracistas.
Letramento racial
Assim como o ambiente alfabetizador é essencial durante o processo de alfabetização, também é importante haver um ambiente que ajude no letramento racial das crianças e alunos no contexto da Educação Antirracista.
Um ambiente alfabetizador, por exemplo, é composto por elementos visuais como alfabetos ilustrados e painéis de numerais, que auxiliam as crianças a identificarem, de forma autônoma, as pistas necessárias para aprender a ler e a escrever. Quando se trata de aplicar a Educação Antirracista, é indispensável pensar em um espaço que promova a representatividade e a diversidade, pois esse cuidado com os elementos ali presentes pode impactar na percepção dos alunos sobre si mesmos.
Segundo Clarissa Brito, professora e pedagoga com especialização em Educação Infantil, o ambiente com letramento racial está comprometido com o desenvolvimento da consciência de si mesmo como sujeito. Isso proporciona diferentes experiências de aprendizagem e permite que as crianças possam, de algum jeito, se ver e saber quem são.
Para o desenvolvimento dessa identidade, Clarissa sugere que a sala de aula, que é esse lugar de letramento racial, tenha um espelho. “O aluno deve ter a experiência de poder se admirar e ser convidado a olhar os seus próprios olhos, o seu cabelo e a beleza que existe nele. Relacionar-se com seus traços é fundamental para potencializar a autoestima negra no ambiente escolar”, afirma a pedagoga. Ela diz que as crianças brancas devem ter a oportunidade de observar aqueles que não são seus pares raciais na mesma experiência de admiração e de autocuidado.
Quando alunos negros e indígenas se veem representados nas imagens, nos livros e nos materiais escolares, conseguem validar suas identidades e experiências, aumentando o senso de pertencimento. É um reconhecimento de que suas histórias, culturas e contribuições são respeitadas.
“As imagens contam muito sobre o que a gente acredita e considera relevante. Então, o ambiente de aprendizagem precisa ter representação. Se há na minha sala de aula murais indicativos, figuras que estão mostrando ações, gestos e modelos, é importante haver representatividade negra para forjar imaginários e ‘normalizar’ a presença negra em qualquer lugar da sociedade”, aponta Clarissa.
Esse tipo de representatividade tem o potencial de inspirar e motivar os alunos, mostrando que eles ocupam um lugar importante socialmente e que suas aspirações são legítimas e alcançáveis.
- Leia também: Caminhos para fazer da escola um espaço antirracista
Educação Infantil: como reforçar o valor da diversidade?
As crianças começam a se reconhecer no mundo olhando para si mesmas, para suas famílias e para seus amigos da escola, com quem passam a maior parte do tempo. Por isso, é preciso que esse ambiente reflita, visualmente, a diversidade que existe nas turmas, incorporando elementos de maneira intencional e pedagógica.
Geisa das Neves Giraldez, professora de Educação Infantil na rede pública do Rio de Janeiro (RJ), explica que, entre os pequenos, a aprendizagem acontece bastante por meio da materialidade, do que é concreto e do que é possível enxergar. Ela lembra que, até hoje, o imaginário da sociedade é permeado por estereótipos como o médico branco e a faxineira negra. Diante disso, ela destaca a importância de avançar no modo como a temática racial é representada.
“Ainda que se fale de inclusão, os livros, imageticamente, precisam mostrar a existência de uma criança negra na praia, na biblioteca com a mãe. E não apenas abordar a questão da raça como uma situação de sofrimento [em datas que tratam da abolição da escravatura, por exemplo]", pontua.
Na visão da pedagoga Clarissa, já existe um referencial posto para as crianças, e agora é preciso fazer um caminho de reconstrução, para transformar essas subjetividades. Assim, quando se trata da estética negra, ela acredita que é importante se atentar às sutilezas para não levar à sala de aula olhares estereotipados.
“Muitas vezes, se traz uma figura com estética negra associada à ideia de diminuição e depreciação. Por isso, [a escolha da imagem] exige cuidado, pesquisa e uma análise cuidadosa e honesta intelectualmente”. Para construir recursos materiais de sequências didáticas potentes e que fomentem o desenvolvimento da mentalidade antirracista das crianças, é necessário mergulhar em territórios [áreas, campos de pesquisa e leituras] que estão engajados nesse tipo de produção, completa a pedagoga.
Imaginação e repertório
Nesse contexto, o educador pode então estimular o imaginário dos alunos a partir de murais com recortes que mostram pessoas de diferentes origens em atividades cotidianas, de narrativas que resgatam tradições dos povos originários e de pôsteres que celebram figuras históricas de etnias variadas, entre outros recursos.
A professora Geisa relata, por exemplo, que algumas crianças pedem que ela conte “histórias de sua cabeça”. Segundo ela, essa é uma maneira de extrapolar o que está nos livros. “Durante a contação, eu trago nomes parecidos com os dos alunos. Nos materiais, não tem uma ‘Kailane’, um ‘Jonathan’, e não se fala da organização de famílias negras com apenas uma mãe e uma avó. Por isso, eu busco elaborar essas imagens também por meio da oralidade.”
Geisa indica que há uma distorção do que é a imaginação, ao se considerar que os pequenos imaginam mais, quando, na realidade, essa imaginação se dá a partir de um repertório. Por isso, se esse repertório não é múltiplo e diverso, as possibilidades que a criança tem de imaginar diminuem.
“Expandir os referenciais e apresentar as várias maneiras de perceber o mundo não favorece apenas crianças negras, mas enriquece toda a sociedade. A escola só tem a ganhar com a celebração das diferenças”, defende a professora.
Ensino Fundamental: um passo a mais na convivência
Nessa etapa de ensino, os alunos começam a formar relações mais complexas e a entender melhor as dinâmicas sociais. “Pensando especialmente nos Anos Iniciais, vejo a escola como promotora de novos vínculos, além de ser um dos únicos lugares de sociabilidade fora da família”, comenta Sherol dos Santos, professora na rede estadual do Rio Grande do Sul e integrante do Time de Formadores da NOVA ESCOLA. Diante dessa realidade, ela diz que o espaço escolar precisa agregar uma cultura de paz, respeito, diversidade e equidade, para que seja possível construir interações mais saudáveis e seguras.
Para ela, também é urgente combater a ideia de que existe uma identidade humana universal representada por pessoas brancas. “O professor precisa estudar e pesquisar intencionalmente a história afro-brasileira, fazendo uma integração com todas as áreas do conhecimento, tendo papel ativo no planejamento e na inclusão de recursos visuais adequados nas suas atividades curriculares”, alerta Sherol.
Como exemplos de ações, Lavini Castro, doutoranda em História, mestre em relações étnico-raciais e idealizadora e coordenadora da Rede de Professores Antirracistas no Rio de Janeiro, sugere criar espaços com exposições da cultura afro-brasileira e indígena na escola, adquirir livros para a biblioteca que mostrem representações educativas desses indivíduos, fazer pesquisas de campo em terreiros afro-brasileiros, quilombos e aldeias indígenas, além de promover palestras com lideranças étnico-raciais.
Se a instituição estiver localizada em territórios indígenas ou quilombolas, levar essas referências para as salas de aula, batizando-as com nomes de aldeias ou de quilombos, pode ser uma forma simbólica de reconhecer essas comunidades.
De acordo com Lavini, evidenciar aspectos positivos da presença e das contribuições dos povos afro-brasileiros e dos indígenas é muito importante. Ela conta que, certa vez, propôs um jogo que chamou de “Afro-bingo”, cujo prêmio era o chocolate Diamante Negro. Para essa atividade, os alunos tiveram acesso a fotografias e minibiografias de lideranças afro-brasileiras e indígenas. No primeiro tempo da aula, eles aprenderam sobre essas personalidades e, na volta do intervalo, jogaram.
“Eu tirava [de uma sacola] perguntas ou frases sobre as lideranças, e os alunos tinham que identificá-las na cartela para preenchê-la. Essas aulas fazem com que as turmas compreendam as relações de poder, exclusão e injustiça, desenvolvendo empatia e conscientização”, ressalta.
Práticas institucionais
A comunicação institucional da escola é outro aspecto que deve refletir o pensamento antirracista e promover a diversidade e a inclusão. Ela é uma extensão dos valores e princípios da instituição, e o que é transmitido pode influenciar significativamente o clima escolar.
Assim, é essencial garantir, por exemplo, que as imagens e as mensagens de cartazes, folhetos e anúncios, digitais e físicos, representem a variedade de etnias que a escola reúne, evitando estereótipos. E tornar essa diversidade visível e representada em todas as funções, desde o corpo docente até o pessoal de apoio, também faz diferença.
Quando os alunos negros veem pessoas iguais a eles em posições de liderança, isso os inspira a acreditar em seu potencial e em suas capacidades. Além disso, a gestão pode adotar práticas que reconheçam o espaço escolar como diverso, auxiliando na mediação dos conflitos e ajudando a criar um ambiente de igualdade.
Segundo a professora Clarissa, é a escola que oferece as ferramentas necessárias para descolonizar a sociedade. “É ela que possibilita que a gente aprenda a viver em um universo multicultural. Nessa experiência de coletividade, de vida em grupo, vamos desde cedo ensinando que é nesse ambiente de aprendizagem que conseguimos as maiores transformações”, conclui.
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