Antirracismo na Educação Infantil: como e por que colocar em prática?
Nessa etapa, as crianças são curiosas e mais abertas para aprender sobre diferenças, sendo possível promover uma formação de valores como respeito e empatia
POR: Lavini CastroNeste mês de outubro, aproveitando o apelo do Dia das Crianças e do Dia dos Professores, gostaria de compartilhar com vocês, colegas, uma conversa sobre a importância da Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER) começar ainda na Educação Infantil.
De acordo com a Lei 10.639/2003, alterada pela Lei 11.645/2008, o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira, Indígena e Africana é obrigatório em toda a Educação Básica, visando assegurar o direito à igualdade de visibilidade das diversas culturas que compõem a sociedade brasileira. Entretanto, na prática, muitas vezes, esse debate fica restrito ao currículo escolar do Ensino Fundamental e Médio.
Não sei se você pensa como eu, mas para mim, a Educação infantil é a fase escolar oportuna para que as educadoras e os educadores ensinem sobre relações sociais, por ser, nessa fase, que as crianças começam a compreender o mundo que as cerca e a construir suas primeiras relações sociais.
Para a Shirlei Machado, formadora de professores para ERER e contadora de História da primeira Infância ao EJA, “a Lei 10.639 precisa permear todos os espaços educacionais, começando pela Educação Infantil, por meio de vivências e experiências envolvendo crianças, famílias e comunidade escolar, de forma a garantir a valorização da diversidade cultural. Dessa forma, as crianças, desde de cedo, aprendem a respeitar e apreciar diferentes culturas e etnias”.
A professora Shirlei frisa que é necessário buscar uma Educação Antirracista que não apenas combata o racismo, como quebre estereótipos e preconceitos existentes na sociedade como um todo.
Segundo ela, o currículo deve contemplar a cultura dos povos originários, africanos e afro-brasileiro, mostrando a todos que merecemos respeito e garantindo que nossas crianças tenham orgulho de sua raça, fortalecendo o empoderamento.
Como podemos ver, a Educação Infantil é uma etapa primordial para iniciarmos a aprendizagem das boas relações, visto que é nessa fase da aprendizagem escolar que ocorre a formação da identidade e da consciência crítica das crianças.
Crianças, comportamentos racistas e ERER
Nessa fase, é possível promover uma formação de valores como respeito, empatia e igualdade. E, exatamente por isso, é totalmente possível falarmos de Educação Antirracista na Educação Infantil.
Especialmente nessa etapa, as crianças se apresentam curiosas e abertas a aprender sobre as diferenças. Diante disso, a abordagem sobre as relações raciais pode fluir mais facilmente. Porém, não se engane: crianças na primeira infância podem reproduzir comportamentos racistas.
A professora Karen Lamego, especialista em ERER na Educação infantil e mestra em Educação para as Relações Étnico-Raciais nos conta que “é muito comum, ainda nos dias atuais, os questionamentos sobre se crianças pequenas reproduzem racismo ou se há importância em implementar a Lei 10.639/03 no currículo da Educação Infantil. A resposta para ambos questionamentos é: sim”.
Karen nos explica que crianças pequenas são profundamente influenciadas pelo ambiente ao seu redor. Na Educação Infantil, fase em que geralmente têm os primeiros contatos fora do ambiente familiar, elas começam a observar, absorver e reproduzir padrões sociais, inclusive, estereótipos e preconceitos raciais”.
Por isso, para a professora Karen, “trabalhar as relações raciais na Educação Infantil é essencial porque é nesse momento que os pequenos estão formando suas primeiras noções de identidade, diversidade e pertencimento. O desenvolvimento de uma Educação Antirracista desde cedo não só impede a reprodução de comportamentos racistas, como também valoriza a identidade de crianças negras, ajudando a construir uma autoestima positiva e um senso de dignidade e respeito”.
Além disso, Karen pondera que, ao desenvolver uma prática pedagógica para contemplar a Lei 10.639/03 na Educação Infantil, o professor contribui para a construção de um currículo que valoriza a história e cultura afro-brasileira, promovendo a igualdade racial.
Ao trazer essas discussões para dentro da sala de aula desde cedo, cria-se um ambiente de inclusão e respeito às diferenças, fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e equitativa.
Aprendizagem, convivência e intencionalidade pedagógica
Embora, historicamente, a escola esteja atrelada aos princípios da racionalidade moderna, em que circula a sistematização do saber informativo e a produção do conhecimento científico, é nesse espaço também que aprendemos a conviver e é na Educação Infantil que começam as primeiras vivências e experiências desses contatos sociais.
Por isso, a escola, não só pode, como deve ser concebida como espaço da diversidade. Por mais que existam tentativas de silenciar ou marginalizar as diferentes visões de mundo e formas de viver a vida, é na escola que há possibilidade de perceber diversos grupos raciais e suas culturas.
Então, professoras e professores, o que queremos para nossas escolas? Que elas sejam um lugar de apropriação do conhecimento, apenas um lugar científico por excelência ou podemos mesclar fazendo da escola um espaço de troca, de diálogo entre diferentes saberes, culturas e linguagens?
Sinto que nós ficamos divididos na hora em que organizamos nosso planejamento: ensinamos o conteúdo científico apreendido nas faculdades ou ensinamos as relações? Existe uma cultura escolar que exagera na quantidade de conteúdos científicos a serem apreendidos nas escolas e, às vezes, não há tempo para aprendermos sobre relações, cordialidade, respeito.
Porém, podemos mudar essa realidade por meio da nossa intencionalidade pedagógica e diagnosticar o que de fato aquela escola, turma e comunidade escolar precisam, inicialmente, para interceder com projetos e propostas em que os conteúdos apreendidos tenham significado para a vida dos alunos e alunas.
Um outro dado interessante é entender que, se há uma valorização curricular para assuntos científicos no Ensino Fundamental e Ensino Médio, o melhor seria que na Educação Infantil se explorasse mais a aprendizagem das boas relações entre os diferentes grupos que transitam no chão da escola, por ser essa fase em que as crianças vivenciam experiências de pertencimento identitário e aprendem habilidades essenciais para a vida, ou seja, aprendem a conviver no microcosmo social que é a escola. Isso não iria impedir ou inibir a aprendizagem ou a reflexão sobre as relações raciais em outras fases escolares, até porque quanto mais aprendemos e tornamos mais complexa a aprendizagem, novos aprendizados acontecem e novas reflexões somos estimulados a ter. Contudo, podemos esperançar que quanto mais cedo as crianças têm contato com a diversidade, mais simples e naturalizado fica falar sobre o problema do racismo e outras discriminações interseccionalizadas nas outras fases da aprendizagem escolar.
Por isso, é urgente abordar o tema das relações raciais desde a Educação Infantil porque:
Aprendizagem auxilia no desenvolvimento da empatia e da compreensão mútua
Crianças que desde cedo aprendem a se respeitar na sua diversidade étnico-racial, se veem em representações positivas, compreendem suas particularidades como parte da pertença racial e social e compreendem um mundo diverso em que todos estão inseridos e são participativos.
Ao aprenderem que a natureza humana é diversa e que não há um grupo racial ideal, pois o ideal é a própria diversidade, é possível ensinar relações mais justas em que a empatia pelo outro que se apresenta diferente de mim é uma realidade natural e as diferenças serão apenas curiosidades e não atributos de valor hierárquico.
Nessa fase é possível combater a discriminação e o preconceito ao estímular uma convivência mais harmônica
Ao expor as crianças a diferentes culturas, etnias, gêneros e classes sociais, ajudamos a quebrar estereótipos e promover a valorização das diferenças porque naturalizamos a presença daquilo que, até então, foi considerado diferente. Cabe a nós professores rechear nossas salas de aula com experiências dinâmicas e diversidades.
O contato com as culturas africanas, indígenas e afro-brasileiras promove o reconhecimento existencial e contributivo dos grupos raciais que pertencem a essas culturas que deixam de ser estranhos ou entendidos como algo à parte para somar com outras culturas já reconhecidas.
Vivências auxiliam na formação de cidadãos mais conscientes e preparados para a vida em sociedades racialmente plurais
Crianças que são introduzidas aos conceitos de raça e racismo, negritude, pertencimento, ancestralidade, aprendem a importância de defender a justiça e a igualdade porque criam conscientização sobre os direitos humanos. A Educação Infantil pode, sim, ser antirracista.
A convivência ensinada para ser mais harmônica educa para o desenvolvimento de habilidades sociais importantes para a vida em sociedade, como a cooperação, a comunicação e a resolução de conflitos e as crianças que aprendem a conviver em grupo, conseguem construir relações mais saudáveis e duradouras.
Ações antirracistas na prática da Educação Infantil
A partir de tudo isso, você, professor, pode se perguntar como, de forma prática, trabalhar a Educação para as Relações Étnico-raciais na prática da Educação Infantil. A seguir, algumas sugestões:
- Brincadeiras e jogos: por meio de brincadeiras e jogos, as crianças podem explorar diferentes culturas, papéis sociais e perspectivas.
- Histórias e contos: a leitura de histórias e contos que abordam a diversidade e a inclusão pode despertar a curiosidade das crianças e promover a reflexão sobre as relações sociais.
- Contato com a comunidade: visitas a museus, parques e outras instituições podem proporcionar às crianças a oportunidade de conhecer pessoas de diferentes origens e culturas.
Em resumo, a Educação Infantil é o momento ideal para semear valores como respeito, tolerância e solidariedade. Ao trabalhar essas relações desde cedo, estamos formando cidadãos mais justos, empáticos e conscientes de seu papel na sociedade.
A Educação Antirracista não deve ser direcionada exclusivamente às crianças e alunas e alunos negros, deve, sim, ser uma ação política e cotidiana em prol de, realmente, se efetivar uma ruptura de narrativas discriminatórias.
Por isso, o professor antirracista deve compreender a frase de Ângela Davis que diz: “Numa sociedade racista não basta não ser racista, é necessário ser antirracista”.
Lavini Castro é educadora antirracista. Doutoranda em História Comparada pelo PPGHC/UFRJ. Mestre em Relações Étnico Raciais pelo PPRE/CEFET-RJ. Historiadora pela UFRJ. Professora de História do Ensino Fundamental e Ensino Médio das redes pública e particular do estado do Rio de Janeiro. Idealizadora e coordenadora da Rede de Professores Antirracistas. Ganhadora do Prêmio Sim à Igualdade Racial do ID_BR em 2021.
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