BNCC: protesto de professores paralisa discussão do Ensino Médio
Docentes pedem suspensão do processo de aprovação da Base do Ensino Médio; CNE se divide sobre legitimidade do ato
POR: Paula Peres, Laís SemisÚltima atualização às 17h55
A segunda audiência pública sobre a Base Nacional Comum do Ensino Médio (BNCC) do Ensino Médio estava programada para acontecer nesta sexta-feira (08/06), em auditório no Memorial da América Latina, em São Paulo. Porém, a cerimônia foi cancelada depois de uma intensa manifestação protagonizada por professores e estudantes de escolas públicas.
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A audiência estava prevista para começar às 9h. Minutos depois, antes que os membros do Conselho Nacional de Educação (CNE) pudessem ocupar seus lugares para dar início à cerimônia, os professores tomaram a mesa e o palco do auditório. “Eu, particularmente, lamento”, diz Eduardo Deschamps, presidente do CNE. “Estamos exatamente fazendo o movimento de ouvir a sociedade brasileira acerca dos pontos positivos e negativos da Base. O Conselho tem a prerrogativa de aperfeiçoar o documento”.
Os manifestantes carregavam faixas de protesto e entoavam em coro frases como “Não à privatização”, “Não à reforma do Ensino Médio” e “Não à BNCC”. Ainda houve uma tentativa de dar início à programação, que logo foi interrompida. Pouco depois, um novo grupo de manifestantes, dessa vez estudantes secundaristas, uniu-se ao principal, em coro: “O professor é meu amigo, mexeu com ele, mexeu comigo”.
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Às 10h07, o presidente da Comissão Bilateral da BNCC, Cesar Callegari, foi ao microfone para anunciar que a audiência pública da região Sudeste estava cancelada. O anúncio foi comemorado por muitos dos presentes.
O estudante João, de 16 anos, ficou sabendo o que era a audiência da BNCC por sua professora. Apesar de tender a ser contra a proposta do documento, ele gostaria de ter ouvido o debate. “Eu sou um cara que quer conhecer os dois lados, porque não tenho uma opinião formada. Estava na expectativa de escutar as pessoas que iriam se pronunciar contra e a favor, para eu poder criar o meu entendimento”, diz.
Para a conselheira Aurina de Oliveira Santana, embora o movimento seja uma manifestação legítima e traga uma opinião que precisa ser considerada, fica um questionamento sobre a efetividade da ação. “A gente fica em dúvida de até que ponto esse tipo de movimento ajuda. Sou a favor, todos devem se movimentar e se preocupar. Mas agora é hora de as pessoas darem suas opiniões”, diz Aurina. “Eu acho que não está invalidado todo o trabalho. A gente tem que pegar esse trabalho e dar uma revisada nele, incluindo as opiniões públicas”.
Márcia Ângela Aguiar, conselheira do CNE, acredita que embora as atividades do dia não tenham acontecido como o previsto, a mensagem dos participantes é clara. “Se alguém disser que não houve audiência, não é verdade. Houve. Só que uma audiência diferente. Esse é o recado que vem para o Conselho”. Durante a aprovação da Base da Educação Infantil e Ensino Médio no ano passado, as conselheiras Márcia, Aurina e Malvina Tuttman pediram revisão do documento e se posicionaram contra na votação de aprovação do documento (leia mais sobre o acontecimento aqui). O argumento era de que o tempo de aprovação estava sendo rápido demais e a proposta da Base estava fragmentado, visto que o Ensino Médio não estava sendo discutido em conjunto com as outras etapas. “Não reconheço uma BNCC sem o Ensino Médio. Ele deve integrá-la, ou então não temos uma Base comum”, comentou Aurina na ocasião.
O que queriam os manifestantes
O professor de História e membro da diretoria da Apeoesp, João Zafalão, diz que a proposta de impedir que a audiência acontecesse é uma consequência do fato de que as entidades representantes dos professores e estudantes não enxergam a audiência pública como um espaço democrático. “Essa audiência é uma farsa para cumprir um rito obrigatório e impor uma Base que já está definida”, diz. Para ele, o debate precisa ser democratizado e o atual governo não teria legitimidade para fazê-lo. “Eles não têm legitimidade para fazer reforma nenhuma. Acho que o mínimo de dignidade é suspender o debate e o próximo governo eleito democraticamente retomá-lo”.
Os professores Débora, de Biologia, e Vagner, de uma escola estadual em Itaquaquecetuba, na região metropolitana de São Paulo, saíram às 7h da manhã para estar às 9h no auditório do Memorial da América Latina, na capital paulista. Além de seus colegas de profissão organizados com o auxílio da Apeoesp, eles trouxeram alguns alunos. Sua principal reclamação também é sobre a falta de diálogo com os professores e estudantes na construção do texto da BNCC e da reforma do Ensino Médio. “Nós sabemos que o projeto é antigo, mas os alunos não têm esse conhecimento. Os meus nem sabiam que hoje estaria acontecendo este evento. Eu os trouxe justamente para que pudessem participar, para que eles não fossem só coadjuvantes”, disse Débora. Vagner completou: “O governo disse que houve aprovação de mais de 70% para a reforma do Ensino Médio, mas se você for perguntar para os meus alunos, ninguém votou a favor”.
Essa visão é compartilhada por Gabriel, estudante de 18 anos, vice-presidente da União Paulista dos Estudantes Secundaristas (UPES): “A gente vê o atropelo do governo federal em fazer uma reforma que não teve o debate com professores e estudantes, e que não tem condições de ser aplicada no Ensino Médio”.
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Na opinião de Débora, o processo da audiência pública já impede a participação popular. “Para entrar na audiência pública, precisa de inscrição. Mas se você for em Itaquaquecetuba, que é um município pobre do estado de São Paulo, na minha escola, que não é uma das mais ruins, você vai ver que nem todos os alunos têm acesso à internet”, relata.
Para Leís da Silva Rosa, professor de Geografia, o formato também não ajuda o debate a ser amplo e democrático. “Para ser uma audiência pública, de fato, precisaria ser em um lugar público e aberto ao povo, sem restrições, como, por exemplo, em uma Avenida Paulista ou uma Praça da República”, opina. Outros docentes, em conversas paralelas, também relataram a falta de comunicação dentro da própria categoria sobre quando e como aconteceria a audiência pública. Por esse motivo, muitos chegaram na porta do auditório sem ter feito sua inscrição.
O professor Vagner levanta, ainda, outros pontos críticos que a BNCC do Ensino Médio tem, na sua visão: o fato de ser um documento nacional, a introdução do chamado “notório saber” para ministrar disciplinas (indicada na lei de reforma do Ensino Médio, não na BNCC, e restrita a disciplinas de formação técnica profissionalizante) e a reorganização das disciplinas por áreas de conhecimento. “Eu acho que a Base tem que estar vinculada à realidade de cada estado. Como posso pensar em uma Base Nacional Comum sendo que há diferenças em cada estado? O documento nacional deveria dar conta de dizer que todas as disciplinas devem ser ofertadas, mas respeitando as particularidades de cada estado. Mesmo dentro de um estado, os alunos do interior, do centro da capital e da periferia são muito diferentes, não dá para compará-los”.
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Sobre a organização das aulas por áreas de conhecimento, Vagner é categoricamente contra. “Eu sou aluno dos anos 80, da ditadura militar, eu vi isso. O mesmo professor que dava aula de Geografia também dava História e Organização Social e Política Brasileira (OSPB), porque não tinha nem Sociologia. Eu acho que cada disciplina tem o seu valor cultural, sua peculiaridade. Mas temos que trabalhar num processo de interdisciplinaridade, cada disciplina apoiando e respeitando a outra”, defende.
Para o conselheiro Eduardo Deschamps, do CNE, embora sejam preocupações que estejam aparecendo em outros fóruns, essa era uma nova oportunidade de acolher as manifestações para que possam compor o aperfeiçoamento do documento. “Eles mesmos se impediram de fazer essas manifestações. São pontos que têm aparecido e o Conselho é sensível a esses itens e está trabalhando para evitar que ações dessa natureza possam prejudicar a melhoria da qualidade da Educação”.
Muito além da Base
Para Luis Carlos de Menezes, professor da Universidade de São Paulo (USP) e consultor das duas primeiras versões da Base, as manifestações que pararam a audiência não tiveram a ver com a Base. “Esse movimento é uma reação à Lei [da reforma do Ensino Médio]. Ela foi feita às pressas, em uma medida provisória que não dialoga nada com a escola que existe”, diz. “Você tem uma intervenção muito pesada sobre a escola. O Ensino Médio precisa ser modificado, mas isso tem que ser um processo”, diz.
"É impossível dissociar a BNCC do Ensino Médio, da lei da reforma que foi proposta pelo atual governo", afirmou Cesar Callegari após o cancelamento da audiência. Segundo ele, a própria lei se refere à Base como a "forma organizativa principal daquilo que virá a ser o Ensino Médio". A reforma e a BNCC têm que ser discutidas juntos. “Os segmentos têm uma percepção correta de que uma coisa afeta a outra".
O fato de outras políticas educacionais aparecerem com tanta força durante a audiência da Base não se trata apenas de um ruído para a conselheira Márcia Ângela. “Temos propostas que vão no alargamento do Ensino a Distância (EaD), com maior foco no mundo do trabalho. Temos uma situação de mudanças no campo educacional que estão sendo aceleradas”, diz. Segundo ela, as questões precisariam ser melhor debatidas. “Estamos vivenciando nos últimos tempos determinadas medidas que estão sendo tomadas diante de calendários de gestão. Isso é complicado porque cada um que assume quer que isso seja feito dentro da sua gestão e a Educação não é assim. Mudanças levam tempo”.
A opinião é compartilhada por Callegari. “Estou convencido de que os tempos do governo são tempos administrativos e não podem ser os tempos de algo como a Base, que vai perpassar muitos governos e vai impactar a Educação brasileira nos próximos 20, 30 anos”, diz o presidente da Comissão. Márcia Ângela complementa: “Não é o período indicado para propor uma reforma dessa natureza com essa abrangência”.
Márcia destaca que as alterações precisam considerar o cenário completo e não elementos isolados. Pontos como a formação de professores, que precisará passar por atualizações para que a BNCC seja implementada, precisariam considerar não só o tempo, mas as condições adequadas para tal. “Medidas isoladas não vão resolver”, ressalta. Para a conselheira, a prova é o próprio ato que se desdobrou durante a audiência. “Se fosse só o sindicato, até seria fácil resolver. Mas não é. É um sentimento que está na rede de ensino”. O receio é que, com a rejeição ao documento, dar prosseguimento ao processo pode impedir que a Base seja implementada, já que os professores atuam diretamente nesse processo. “Se a BNCC nascer ilegítima, pode até ser boa, mas pode também prejudicar a própria existência de uma BNCC”, atenta Callegari.
De acordo com o presidente da Comissão da Base, a agenda das próximas audiências públicas deve ser mantida, com a possibilidade de remarcar a audiência da região Sudeste. “O CNE vai insistir em ouvir a população. Vamos manter abertos os canais já existentes e temos recebido e atendido demandas de reuniões específicas por entidades nacionais da área da Educação, como o CNTE e as entidades estudantis”, afirma Callegari. O próximo encontro está previsto para o dia 5 de julho em Fortaleza, no Ceará.
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