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O que a cultura indígena brasileira ensina para as escolas

Conheça práticas que valorizam os povos indígenas sem recorrer a estereótipos e que podem inspirar atividades em escolas dos mais diversos contextos

POR:
Jonas Carvalho
Aluna potiguara da EEIEFM Pedro Poti, em Baía da Traição (PB), durante preparativos para o ritual do toré. Foto: Júlio Cezar/NOVA ESCOLA

A EEIEFM Pedro Poti, em Baía da Traição (PB), é a primeira escola estadual indígena do território potiguara e um exemplo dos diversos ensinamentos e contribuições que a cultura indígena brasileira traz para as escolas do país, independentemente do contexto em que estão inseridas. 

Entre eles, está a forte relação que os povos originários têm com sua identidade, história, modo de vida e território. A ligação está presente, por exemplo, na própria infraestrutura da unidade escolar: disposta em formato de oca, o pátio principal, a secretaria, a sala dos professores e a cozinha ficam ao centro, enquanto as salas, banheiros e quadra se encontram ao redor da estrutura central.

A quadra, aliás, foi palco para as atividades realizadas pela escola ao longo da Semana de Conscientização Indígena, que antecede o Dia dos Povos Indígenas, celebrado em 19 de abril. 

O início da Semana foi marcado pelo toré, ritual sagrado que realça o sentimento de nação, de grupo e de amizade entre a comunidade. Nele, alunos e corpo docente, munidos de maracás, zabumbas e outros instrumentos, cantam sobre elementos da cultura potiguara enquanto formam círculos na escola, as linhas da quadra poliesportiva servem como referência. Após o ritual, foram realizados debates sobre temas como educação, saúde, meio ambiente e território.

Alunos e equipe escolar durante o toré, na EEIEFM Pedro Poti. Crédito: Júlio Cezar/NOVA ESCOLA

Iratan Ciríaco, gestor escolar da Pedro Poti, explica que a instituição e outras unidades indígenas atuam de forma a preservar essa cultura. “A escola indígena tem esse papel: conscientizar e incentivar os alunos para que a luta indígena não pare. Ações e atividades escolares fortalecem a cultura, o que também fortalece seu povo”, frisa.

Inaugurada em 2003, a escola está localizada na aldeia São Francisco, uma das 32 que permeiam as cidades paraibanas de Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto. Na instituição, o corpo docente é composto majoritariamente por indígenas. No caso dos alunos, pessoas indígenas e não indígenas integram as turmas dos Anos Iniciais e Anos Finais do Ensino Fundamental, do Ensino Médio e da Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Cultura indígena em todas as escolas

Abordar a cultura indígena brasileira em sala de aula é um dever instaurado pela Lei 11.645/08, que tornou obrigatório o estudo da história dos povos originários e afro-brasileiros. Elisa Vilalta, integrante do Time de Formadores da NOVA ESCOLA, lembra que a valorização da cultura indígena está também presente na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o que reforça a importância de levar o assunto para a sala de aula. 

Além disso, a educadora lembra que os povos originários devem ser reconhecidos enquanto parte da sociedade brasileira, assim como sua influência na cultura do país. “Temos palavras, comidas, costumes e formas de viver no Brasil que remetem diretamente aos povos indígenas, e levar isso à escola é uma maneira de valorizar essa contribuição”, afirma.

Iratan acrescenta: “As escolas, independentemente de serem indígenas ou não, têm de abordar esses temas [relacionados à cultura dos povos originários], porque é um assunto de relevância”.

Desde sua criação, a equipe escolar da Pedro Poti se preocupou em elaborar uma matriz curricular que abordasse a cultura e identidade do povo potiguara, conforme conta Sonia Potiguara, professora de História dos Anos Finais do Fundamental e do Ensino Médio, que está na instituição desde sua inauguração. 

“Assim, nós podemos levar aos alunos um ensino diferenciado, que permite o conhecimento do nosso povo, das nossas origens e dos nossos antepassados. Não tivemos isso quando éramos estudantes, por isso nos preocupamos em levar esse conhecimento aos nossos alunos”, conta a educadora.

Entender e diferenciar as realidades indígenas

Mas, para que essa abordagem faça sentido, Joelma Potiguara, professora de Etno-História e Arte e Cultura na Pedro Poti, aconselha às escolas e professores não indígenas que aprofundem seu conhecimento sobre os povos para além das referências da região Norte, já que existem povos originários em todas as regiões do Brasil.

“É preciso conhecer os indígenas do Brasil, e não só aqueles de uma determinada localidade. As etnias brasileiras representam uma diversidade muito grande. Os povos e a cultura indígena não são iguais. Logo, deve-se respeitar essa pluralidade. Os Potiguaras não são iguais aos Xucurus, que não são iguais aos Kayapós, e assim por diante – mesmo sendo todos do Nordeste”, explica. 

Elisa endossa essa importância. Ela afirma que professores e escolas não indígenas devem ter cuidado com generalizações sobre os povos. “Essa ideia [de unidade] vem sendo quebrada, tanto que o 19 de abril [antigo Dia do Índio] passou a ser chamado de Dia dos Povos Indígenas. Há um grande número de etnias indígenas, bem diferentes entre si. As escolas devem ter cuidado para não ‘comemorar’ o dia pintando rostos, vestindo os alunos com roupas indígenas ou colocando um cocar”, exemplifica.

Para Iratan, se a escola abordar o assunto de forma superficial ou levar o tema para as aulas apenas no 19 de abril, a chance de ser um desserviço para o aprendizado é grande. “A depender da intenção, não sei se mais ajuda ou atrapalha. Na escola indígena, por exemplo, trabalhamos questões de identidade e cultura o ano letivo inteiro, tanto nas matérias gerais quanto nas diferenciadas”, pontua. 

Os problemas com estereótipos são comuns a outras etnias indígenas. Maria Cleidiane Zacarias Santana, professora de Matemática na Escola Indígena Brolhos da Terra, em Itapipoca (CE), localizada no território indígena Tremembé, afirma que muitas escolas só lembram dos povos indígenas no mês de abril e que o assunto não é discutido no restante do ano. 

“Algumas vezes, recebemos alunos de escolas não indígenas e precisamos quebrar paradigmas. Já escutei estudantes e professores de outras unidades dizendo que esperavam encontrar indígenas nus ou que se surpreenderam com uma pessoa do território usando relógio ou celular”, comenta. 

Um dos recursos que ajuda o currículo a respeitar a realidade local são as disciplinas diferenciadas que as escolas indígenas têm em sua matriz, como Tupi-Guarani, Etnomatemática, Etnogeografia e Arte e Cultura. Enquanto as disciplinas curriculares abrangem conteúdos de forma ampla, na educação escolar indígena, os temas são abordados conforme “nossos costumes, crenças, tradições, espiritualidade e cultura”, explica Marta Domingos, vice-gestora da Pedro Poti. “Assim, passamos aos nossos estudantes, dentro de um contexto pedagógico, os ensinamentos dos nossos ancestrais.”

Lições da cultura indígena para as escolas

Vale também reforçar que não é preciso estar dentro de uma instituição indígena para aprender e disseminar seus valores e saberes. Práticas escolares ligadas à educação indígena podem inspirar atividades e ações em escolas dos mais variados contextos, como mostram os exemplos abaixo.

Realização de alinhamentos pedagógicos

Iratan Ciríaco, gestor escolar da Pedro Poti, afirma que as ações da escola, como a Semana de Conscientização e outras ações similares, só acontecem após reuniões com a equipe. Dessa maneira, nada é feito sem objetivos ou intencionalidade pedagógica previamente definidos.

Isso é importante para que as práticas respeitem a diversidade das 32 aldeias que compõem o território. “Aqui, antes de qualquer atividade, o corpo docente realiza uma reunião de alinhamento pedagógico. A partir desse momento, elaboramos as ações, baseadas na realidade [do povo Potiguara]”.

Marta Domingos, vice-gestora da escola, conta que a unidade escolar também atualiza o Projeto Político-Pedagógico a cada dois anos para enriquecê-lo, sempre considerando e colocando o povo Potiguara no centro do documento e das decisões escolares. 

Respeito às crenças indígenas

Joelma Potiguara cita que educadores podem, de forma equivocada, se referir às crenças indígenas como se fossem lendas.

“Quando se fala de Mãe d’Água, Iara, Pai do Mangue ou de outros encantados, para muitos povos esses seres são reais e sagrados, não são folclore. [A escola] não pode contar essa história como se fosse algo que não existe.”

Fim dos estereótipos 

Mostrar a realidade concreta no lugar dos estereótipos é essencial para escolas não indígenas proporcionarem aprendizados significativos a seus alunos sobre os povos originários. “Muitos ainda têm uma visão de que o indígena anda nu, dentro das matas”, exemplifica Marta.

A realidade não poderia ser mais diferente nos arredores da Pedro Poti e na Baía da Traição, onde as ruas de terra, os comércios de bairro e as casas de alvenaria são similares a tantas outras cidades do interior do Brasil.

Chegada de alunos à Pedro Poti. Foto: Júlio Cezar/NOVA ESCOLA

Outro equívoco, segundo Joelma, é tratar os indígenas como uma população que não “existe mais” ou “um ser do passado”.

“Os indígenas não habitavam um lugar, nós habitamos aqui. Me incomoda muito tratar os indígenas assim, como se não existíssemos mais. Para ser Potiguara, não há a necessidade de nos vestirmos ou vivermos como vivíamos há 500 anos”, diz.

Exemplos de atividades da escola indígena

Durante o ano letivo, a escola Pedro Poti realiza outras ações que visam fortalecer a cultura potiguara, como os Jogos Indígenas internos. Além da prática de modalidades como arco e flecha, corrida e arremesso de lança, os professores aproveitam a ocasião para contar aos alunos aspectos históricos e culturais dessas atividades e sua importância para a comunidade.

Diversas disciplinas também podem usar elementos indígenas locais para potencializar a aprendizagem. Antes de ser gestor escolar da unidade, Iratan foi professor de Matemática e conta como a casa de farinha, local da aldeia onde a mandioca é transformada em ingredientes e que promove a reunião das pessoas, pode proporcionar situações de aprendizagem. 

“Recebemos os livros didáticos [de Matemática] e adaptamos algumas atividades conforme a Etnomatemática. Trabalhar a casa de farinha é interessantíssimo, pois podemos abordar formas geométricas de estruturas como a do forno, que é circular. É possível abordar também ângulos de 90°, formados quando se coloca a massa no forno, entre infinitas possibilidades de outros conhecimentos”, afirma o educador. Isso tudo valendo-se de um local que está conectado à realidade dos alunos indígenas por ser parte do seu cotidiano.

Joelma Potiguara menciona o ensino de Arte Indígena como algo que deve explorar a diversidade dos povos e desmistificar, por exemplo, a ideia dessas produções apenas como artesanato. “Temos 32 aldeias aqui [na Baía da Traição]. Há diferenças entre o tipo de arte feito por cada uma delas. Algumas produzem mais cestarias, outras trabalham mais colares e plumagens”, conta a educadora.

Ela também gosta de levar à sala de aula trabalhos de arte de outras culturas, como pinturas e músicas, e promover comparativos com a arte feita pelo povo Potiguara. “Não fechamos os olhos para outras culturas e as valorizamos, mas também valorizamos o que é nosso. A dança, por exemplo, é importante, mas também é importante [para os estudantes] saber como é a nossa dança e a nossa música”, explica. 

Outro tema que é apontado pela educadora como exemplo de atividade que pode ser adotada por outras escolas é a abordagem das cores primárias nos Anos Iniciais do Fundamental. “Podemos falar das cores que utilizamos para nos pintar, como o vermelho, o preto e outras. Também é possível ensinar sobre a forma como a pigmentação é feita, como no uso de urucum, jenipapo e açafrão”, indica. 

Ampliar repertório para mudar percepções

Fazer paralelos entre a cultura indígena e outros sistemas de conhecimento ajuda a aprendizagem. Foto: Júlio Cezar/NOVA ESCOLA

A professora Joelma Potiguara conta sobre as mudanças que percebeu em turmas dos Anos Iniciais do Fundamental ao propor, no primeiro dia de aula, uma atividade simples na disciplina de Arte e Cultura.

Ela pedia aos alunos que desenhassem, primeiramente, uma fruta. “Qual fruta você acha que os alunos desenhavam? 90% dos alunos desenharam uma maçã”, conta. Depois, ela pedia para desenharem uma casa, momento em que a maioria traçava uma residência com chaminé.

Por fim, ao pedir que desenhassem uma planta ou árvore, os alunos representaram árvores com maçãs ou laranjas. “Nisso, percebemos que há um entrave”, afirma Joelma, aludindo ao fato de que os estudantes sempre traziam referências europeias nas ilustrações, desconectadas de sua realidade local.

“Passei a questioná-los: quais frutas temos aqui? Quem desenhou uma manga, uma acerola ou um coco?” Se, no começo, a educadora contava nos dedos esses casos, hoje, com o passar dos anos, o cenário mudou. “Sempre que repito a dinâmica, os alunos desenham outras frutas, como a mangaba”, diz a educadora.

A professora de História Sonia Potiguara sempre busca levar aos alunos a memória do povo indígena e contar, por exemplo, a origem de rituais, a trajetória dos caciques das aldeias e os conhecimentos compartilhados por anciões da comunidade. Inclusive, uma das atividades conduzidas pela educadora foi promover encontros entre essas referências para os Potiguara e os estudantes.

“Já vimos pesquisadores [de fora] vindo à terra indígena para conversar com os anciãos. Depois, levei alunos para fazerem entrevistas e ouvi de um ancião: ‘Contarei tudo para vocês. Para o pesquisador, eu não conto tudo’”, relembra, reforçando a riqueza de aprendizado de encontros assim.

O território também está presente nas aulas da professora, que utiliza prédios dos arredores da escola em atividades voltadas para os Anos Finais do Fundamental sobre patrimônio ambiental, cultural e histórico. “Temos a Igreja de São Miguel, na aldeia São Miguel; temos os canhões localizados na aldeia do Forte; temos os desmatamentos causados pela monocultura da cana-de-açúcar. Todos esses são elementos da região que contam histórias”, exemplifica.

A educadora também costuma fazer paralelos entre a cultura indígena e outros sistemas de conhecimento. Por exemplo, para falar de Absolutismo, sistema político europeu que ocorreu entre os séculos 16 e 19, ela faz a seguinte analogia com a vivência potiguara: “Discuto com os alunos a figura do rei e faço relação com o cacique da aldeia, para falar sobre questões de poder e administrativas”.

A criação desses paralelos, acredita, contribui tanto para a aprendizagem de temas gerais quanto para conhecer realidades políticas de povos indígenas ou outros grupos sociais que possuem semelhanças e diferenças entre si.

A escola indígena tem esse papel: conscientizar e incentivar os alunos para que a luta indígena não pare , diz gestor escolar potiguara. Foto: Júlio Cezar/NOVA ESCOLA