Mobilidade urbana: como construir um projeto interdisciplinar?
A proposta precisa levar em consideração o contexto dos alunos e da escola, proporcionando protagonismo estudantil, e pode contribuir para a recomposição de aprendizagens.
POR: Dimítria Coutinho
As defasagens de aprendizado, herança do período de ensino remoto devido à pandemia de Covid-19, continuam desafiando os professores. Diante de tantas lacunas, a recomposição das aprendizagens tem sido o termo-chave nas escolas Brasil afora.
O conceito prevê priorização curricular e retomada de habilidades que não foram devidamente desenvolvidas pelos estudantes nos anos anteriores. “Para que esse processo de recomposição aconteça, cabe ao professor avaliar e diagnosticar quais habilidades não foram desenvolvidas por completo e priorizá-las para serem trabalhadas de maneira presencial, sem deixar de lado o ano letivo corrente e o avanço da turma”, afirma a professora Cíntia Diógenes, do time de formadores da NOVA ESCOLA.
A Aprendizagem Baseada em Projetos (ABP) é uma das estratégias para promover o desenvolvimento das habilidades identificadas. E os projetos interdisciplinares permitem que professores de diversos componentes curriculares se unam em torno de um tema, mobilizando assim diferentes objetos de conhecimento de forma significativa para os estudantes. Engajados em solucionar um problema de forma que faça sentido para todos, eles se motivam, desenvolvem novas habilidades e recompõem as de anos anteriores.
Um dos aspectos interessantes da ABP é que o próprio planejamento das atividades prevê uma graduação de complexidade na abordagem do tema – no botão a seguir, baixe ficha que ajuda a planejar e organizar as etapas de um projeto. Essa dinâmica segue a mesma lógica do currículo em espiral, pois a organização em projetos permite retomar conteúdos anteriores e aprofundar os conhecimentos ao longo do tempo.
Construindo um projeto interdisciplinar
A recomposição das aprendizagens foi um dos motores para o desenvolvimento de um projeto interdisciplinar sobre mobilidade urbana e inclusão social na EE Ovidio Edgar de Albuquerque, em Maceió (AL), desenvolvido ao longo de 2021 e 2022, após o período de ensino remoto.
A professora de Educação Física Gedalva Queiroz, responsável pelo projeto, conta que a metodologia de projetos foi essencial para impulsionar a recomposição das aprendizagens e surgiu da necessidade de colocar os alunos em ação. “A pandemia isolou cada pessoa no seu quadrado. A recomposição, então, precisava vir na esteira de mudanças nas atitudes”, afirma.
O tema da mobilidade urbana foi escolhido pelos estudantes por causa de situações vivenciadas por eles cotidianamente. As ruas do entorno escolar eram muito esburacadas e ficavam alagadas quando chovia, tornando a escola pouco acessível, sobretudo a quem tinha dificuldade de locomoção. O objetivo do projeto, então, foi promover aprendizagens buscando soluções para esse problema.
Com o envolvimento de 17 professores de 11 componentes curriculares, o projeto abrangeu do 6º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio. “A gente bagunçou a escola toda”, lembra Gedalva, aos risos. Líderes comunitários, associações e autoridades se uniram para concretizar melhorias: o asfaltamento de ruas, uma intervenção de acessibilidade em toda a calçada da escola e uma arrecadação para comprar um triciclo para dois irmãos que têm dificuldade de locomoção. Tudo isso aconteceu, é claro, além da aprendizagem dos estudantes.
Primeiro passo: diagnóstico e definição do tema
Assim como ocorreu na EE Ovidio Edgar de Albuquerque, o primeiro passo para construir um projeto interdisciplinar é fazer o diagnóstico tanto do aprendizado dos alunos, para definir as habilidades que serão desenvolvidas, quanto do contexto escolar, para pensar a temática norteadora do trabalho. “Ao eleger questões significativas, temos mais engajamento e mobilização, porque fazem sentido não só para os alunos, mas também para a equipe escolar”, afirma a professora Eliane de Siqueira, do time de formadores da NOVA ESCOLA.
Cíntia comenta que, além de o tema vir dos questionamentos dos alunos, e não do interesse dos professores, é essencial que projetos interdisciplinares trabalhem para solucionar um problema. “Isso motiva os estudantes a pesquisar sobre o assunto, discutir, querer realmente alcançar aquilo que se espera deles. Cabe ao professor ser o mediador entre o aluno e o conhecimento”, explica Cíntia.
A escolha das habilidades a recompor é outro grande passo e acontece após o diagnóstico das turmas, feito por meio de avaliações formais, de observação dos professores ou de atividades desenvolvidas exclusivamente para esse fim. Na escola de Maceió, por exemplo, a sondagem diagnóstica se deu pela análise de cartas que os estudantes foram instigados a escrever. Nelas, relataram suas principais dificuldades em cada componente curricular, o que direcionou a escolha dos professores.
Segundo passo: planejamento e diálogo
Identificadas as habilidades e a temática a serem trabalhadas, os professores planejam o cronograma e as ações do projeto. Nessa hora, as especialistas apontam que o planejamento conjunto, envolvendo os diversos componentes curriculares, é um fator essencial.
“Desde o começo, o plano de ação precisa ser feito de maneira interdisciplinar, pensando na integração das áreas”, afirma Eliane. A formadora orienta que, se todas as ações forem pensadas com um objetivo central – por exemplo, melhorar a mobilidade no entorno da escola –, o foco de todos os professores deve ser esse. “Quando descaracterizo o objeto de conhecimento do componente curricular e passo a pensar em um objetivo de aprendizagem comum a todos da escola, os conhecimentos de cada área passam a dialogar”, explica.
Nesse planejamento, Cíntia sugere que os professores se reúnam para analisar quais habilidades desejam desenvolver em seus componentes (aquelas identificadas no diagnóstico inicial), como elas se relacionam com a temática do projeto e de que formas podem ser associadas com habilidades de outros componentes curriculares, para que os trabalhos se complementem. Além disso, o planejamento do cronograma deve levar em consideração a progressão de cada habilidade.
O diálogo entre os professores é outro ponto chave e deve ser constante ao longo do projeto. Na Ovidio Edgar de Albuquerque aconteceram reuniões entre todos os docentes e conversas individuais entre a professora Gedalva e os outros professores.
“Gedalva me perguntava como estava sendo desenvolvido determinado assunto nas minhas aulas. E já dizia: ‘O professor de tal disciplina está indo por esse caminho, talvez seja legal você conversar com ele’. Ela ia canalizando essas interações”, conta Kleiton Ferreira, professor de Sociologia responsável por uma turma do 2º ano do Ensino Médio.
Nas reuniões gerais, Kleiton contava como estava desenvolvendo determinadas habilidades, mas também escutava atentamente para compreender o plano dos colegas e sugerir interações. Fátima Barros, professora de Matemática responsável por uma turma do 9º ano, conta que o projeto “tomou conta da escola” e que os docentes trocavam ideias informalmente, nos intervalos. “Um foi complementando o trabalho do outro. Entendo que a interdisciplinaridade evolui justamente nessa interação”, comenta.
Terceiro passo: ação e interdisciplinaridade
Depois do planejamento, as ações que colocam o projeto em prática devem ser sempre orientadas por metodologias que promovam o protagonismo dos estudantes e a recomposição das aprendizagens.
No caso da escola de Maceió, algumas das estratégias adotadas foram aulas extramuros, acolhimento das sugestões dos estudantes e formação de agrupamentos.
O projeto foi impulsionado pelo programa Professor Mentor, Meu Projeto de Vida, da Secretaria de Educação de Alagoas, que tem como um dos princípios a recomposição das aprendizagens. Com ele, cada turma tinha um docente responsável e um estudante monitor, o que favoreceu o desenvolvimento das atividades em grupo. Elas permitiram que os alunos se ajudassem, recompondo habilidades e desenvolvendo novas.
Além do foco em cada turma, houve também interações entre estudantes de vários anos. “Essa é a importância de pensar em agrupamentos produtivos”, pontua Eliane, que diz que séries mais avançadas podem auxiliar estudantes mais novos em atividades coletivas. “Se o problema for significativo e ele foi bem diagnosticado, a resolução desse problema também vai ser significativa para toda a escola”, completa.
Outra estratégia que ajudou muito a recomposição das aprendizagens foram as aulas extramuros. A professora Fátima, por exemplo, levou sua turma para fazer uma pesquisa no entorno da escola, coletando dados sobre como estavam as vias e quais pessoas passavam por ali. “Eram alunos do 9º ano com dificuldade em alguns conteúdos anteriores. Durante a atividade, desenvolveram estratégias para medir a rua toda, marcando pontos e calculando a área por pedaços”, relembra.
A turma retomou o cálculo de área para entender quanto material seria necessário para asfaltar aquela rua. “A aula extramuros promoveu um jeito mais leve e diferente de abordar conteúdos essenciais. No final, várias habilidades foram mobilizadas em um período relativamente curto. Se fosse em sala de aula, talvez a gente levasse mais tempo e não conseguisse obter o mesmo resultado”, completa Fátima.
Parece, mas não é: o que não fazer em um projeto interdisciplinar
A professora Eliane elenca cinco práticas comuns nas escolas que não colaboram para a interdisciplinaridade:
- Atividades isoladas, que envolvem uma única área do conhecimento;
- Projetos que não têm abordagem significativa para a escola e para os estudantes;
- Projetos que têm foco em uma exposição final, e não em construções significativas para os alunos e para a comunidade;
- Projetos que não dialogam com objetivos de aprendizagem que precisam ser desenvolvidos;
- Cada professor faz uma parte do projeto, e elas são unidas apenas no final.
Problemas reais, protagonismo na prática
As aulas extramuros são também um bom exemplo de como a interdisciplinaridade aconteceu nesse projeto. Os dados coletados pelos estudantes ajudaram na criação de um abaixo-assinado pedindo o asfaltamento da rua da escola.
O professor de Língua Portuguesa do 9º ano, Alexandre Bernardino, conta que trabalhou a função social do gênero textual abaixo-assinado. “Os alunos se sentiram protagonistas ao ver que um problema da comunidade estava sendo discutido e que eles podiam interagir e dar a contribuição deles. Foi muito proveitoso para a recomposição”, comenta o docente.
Já em Sociologia, a mobilização permitiu que o professor Kleiton abordasse temas como democracia, poder político e participação política. Uma das propostas aos estudantes do Ensino Médio foi desenvolver uma redação sobre o que eles mudariam na comunidade, caso fossem parlamentares. Na hora de ler esses textos, o professor conta que a professora Gedalva o auxiliou na avaliação. “Ela conseguiu ver coisas que eu não tinha observado, e nossas percepções se complementaram”, afirma.
Cíntia diz que esse tipo de interação é muito enriquecedor em um projeto interdisciplinar, porque ajuda os professores a fazer possíveis replanejamentos para alcançar a recomposição das aprendizagens. “Preciso avaliar o aluno no decorrer do processo, mas quando a minha avaliação é somada à de outro professor conseguimos ter uma visão melhor de como esse aluno está aprendendo”, afirma.
Com bom diagnóstico, planejamento e ação focada nas aprendizagens dos estudantes, o resultado de projetos interdisciplinares pode atingir toda a comunidade escolar, como no caso da escola de Maceió. “O projeto nasceu a partir de provocações dos alunos, foi organizado dentro da escola e extrapolou seus limites. Então, dá para ver o papel da escola na comunidade”, afirma Kleiton.
Fátima se arrepia ao lembrar da primeira aula depois do asfaltamento das ruas no entorno. “Os alunos diziam, animados: ‘Professora, a senhora já viu?’. Um deles chegou junto com o pai e disse: ‘Eu fiz parte disso aqui’. É bem gratificante”, relembra.
Consultora pedagógica: Eliane de Siqueira, formadora de professores, integrante do Time de Formadores da NOVA ESCOLA.
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