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Como a equidade pode entrar nas discussões sobre mobilidade

Nas aulas de História e Geografia dos Anos Finais do Ensino Fundamental, questões como territorialidade, desigualdade e pertencimento à cidade podem ser trabalhadas com os estudantes

POR:
Dimítria Coutinho
Entenda como relacionar a temática da mobilidade urbana com a discussão a respeito das desigualdades sociais, de gênero e raciais. Ilustração: Rafaella Pascotto/NOVA ESCOLA.

“Tem algo mais político que o movimento de corpos no espaço?”, questiona Bruno Silveira, professor de Geografia em uma escola pública no Bom Jesus, bairro de Porto Alegre (RS), acostumado a ver seus alunos limitados a se deslocar pela região onde moram e estudam. 

Também conhecido como Bonja, o bairro foi historicamente criado para afastar a população negra do centro da capital. Com o crescimento urbano, o local se tornou geograficamente privilegiado, mas ainda carrega os mesmos dilemas da periferia.

“A experiência dos alunos é de uma territorialidade precária, de quem nunca havia saído de seu bairro e que, portanto, não se sente pertencente à cidade”, comenta Bruno, que dá aulas para os Anos Finais do Ensino Fundamental na EM Nossa Senhora de Fátima. Essa observação o motivou a criar o projeto Quilombonja, no qual incentiva os estudantes a pesquisar sobre o território e suas relações com a cidade.

“Tratar de mobilidade, para nós, é enfrentar esses paradigmas coloniais no qual bairros, pessoas e a própria educação escolar pública são colocados em nome de um poder que insiste em destituir dos sujeitos suas possibilidades de emancipação”, afirma o professor. 

Ressaltando as vivências dos estudantes da Bonja, Bruno consegue tratar em sala de aula de temas como racismo, mobilidade urbana, desigualdade de gênero e corporeidade. Ao focar o olhar dos estudantes para o seu contexto e o entorno escolar, o professor estimula a postura protagonista de suas turmas. 

A relação entre mobilidade urbana e equidade é rica para ser abordada em aula, sobretudo em Geografia e História. Mas, antes, é essencial entender sua complexidade. Sherol dos Santos, mestre em História, pesquisadora com ênfase em escravidão e membro do Time de Formadores da NOVA ESCOLA, afirma que o primeiro passo é compreender que “mobilidade não tem a ver apenas com o transporte público”.

Em municípios pequenos, por exemplo, que sequer têm transporte público, a questão do planejamento urbano também pode ser abordada pelos professores. Já nas grandes cidades, é importante não reduzir as questões relacionadas à desigualdade urbana apenas ao acesso, ou não, ao transporte.

Baixe uma listagem de habilidades da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que se relaciona com os temas da mobilidade e da equidade em Geografia e História nos Anos Finais do Ensino Fundamental.Acesse aqui

A história das cidades

Olhar para a perspectiva histórica da urbanização das cidades permite associar mobilidade urbana a desigualdade social e racial. “Historicamente, temos um planejamento urbano que afasta os mais pobres do centro. Ele acaba virando uma bolha onde estão concentradas as pessoas mais ricas. Os empregos estão no centro expandido da cidade, mas a maioria das pessoas que trabalham ali moram nas periferias”, contextualiza Jaqueline Nichi, cientista social e doutoranda do programa Ambiente e Sociedade, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Além das camadas mais pobres da sociedade, populações negras também foram historicamente afastadas dos centros. Assim como na Bonja, o fenômeno aconteceu em grande parte das maiores cidades brasileiras. 

“Toda a construção das favelas e dos cortiços tem a ver com esse processo do fim da escravidão, no qual quem estava nos centros urbanos eram as famílias vinculadas a classes sociais da colonização, e as pessoas que eram descendentes de escravos, ou que eram escravizadas, foram colocadas à margem. Não tinha lugar na cidade para elas”, explica Tauá Pires, coordenadora de justiça racial e de gênero na Oxfam Brasil. “As cidades brasileiras foram construídas a partir da desigualdade racial e da falta de reparação histórica depois do processo de escravidão”, completa.

Negação a direitos

A partir dessa perspectiva histórica, é possível notar que as dificuldades relacionadas à mobilidade urbana implicam a negação de direitos a populações negras e mais pobres.

Em grandes cidades, a parcela da população que vive em áreas periféricas tem dificuldade de acesso a serviços básicos, que geralmente estão localizados nos centros, como:

  • bons hospitais;
  • creches;
  • cultura, como museus, teatros e cinemas;
  • lazer, como parques públicos;
  • bancos e serviços da gestão municipal.

Por conta disso, o acesso a esses serviços, para os moradores dessas áreas, significa mais tempo perdido no trânsito. Além da distância do centro e do custo do transporte, que afetam a população negra, Tauá lembra que a violência urbana atinge mais esse público. Segundo o Atlas da Violência de 2021, o mais recente, pessoas negras têm 2,6 vezes mais chances de serem assassinadas do que pessoas brancas.

“Eles não conseguem circular livremente nos centros urbanos porque são colocados à margem e, quando circulam no centro, são corpos estranhos, que a cidade não está preparada para acolher da mesma forma que o público branco de classe média e média alta”, analisa Tauá. “Essa é uma questão relacionada ao direito de ir e vir”, completa.

Em suas aulas, Bruno fala sobre essas “fronteiras simbólicas que impedem o acesso à cidade”. Ele problematiza com os estudantes os motivos pelos quais eles escolhem estudar no bairro, e não fora dele. “Nada é simplesmente pela nossa vontade. Essa situação nos leva a discutir a mobilidade urbana e direitos básicos, sobretudo a Educação, e como e por que as dificuldades de acesso por moradores das periferias também limitam o processo de cidadania”, comenta o professor.

A falta de acesso à Educação, citada por Bruno, não se dá apenas pela dificuldade mas também pelas circunstâncias. Não raro, alunos demoram horas para chegar às unidades escolares, o que afeta diretamente o aprendizado, por conta do cansaço. Além disso, muitos na periferia precisam trabalhar, estudando apenas no período noturno, quando a segurança também entra na conta, sobretudo para as mulheres.

Mulheres, mobilidade e desigualdade

Além da desigualdade social e racial, a temática da equidade na mobilidade urbana também conversa com a desigualdade de gênero. No Brasil, 97% das mulheres dizem já ter sido vítimas de assédio em meios de transporte, segundo pesquisa realizada pelo Instituto Patrícia Galvão e pelo Instituto Locomotiva, em 2019. Isso é reflexo da falta de políticas públicas simples, como garantir mais iluminação.

A questão da segurança não é o único problema. Enquanto os homens se movimentam entre a casa e o trabalho, e vice-versa, as mulheres se locomovem mais pelas cidades no trabalho de cuidado com os filhos, com as pessoas idosas e com a casa, encontrando uma estrutura que não está preparada para elas. Um exemplo simples é a falta de acessibilidade para circular com carrinhos de bebês.

“Se o planejamento e as políticas públicas urbanas fossem pensados por mulheres, questões práticas como oferta de creches, calçadas acessíveis e iluminação de qualidade, estariam colocadas. São coisas básicas, mas que não são pensadas pelas e para as mulheres”, analisa Tauá Pires. Questões como essas podem ser trabalhadas em sala de aula: cada estudante pode traçar os roteiros de cada membro da família durante o dia ou a semana, ressaltando desafios e dificuldades que cada um deles encontra no trajeto. Só a comparação já rende bastante conteúdo para debate na escola, e o debate é uma ferramenta importante para que a turma aponte soluções para seu entorno. 

Na sala de aula

Para Tauá, as questões relacionadas à mobilidade urbana podem ser resumidas a uma só: “As cidades são pensadas por quais pessoas e para quais pessoas?”. Nesse sentido, a representatividade política é muito relevante, já que grupos com necessidades diferentes precisam de soluções urbanas diferentes.

“Quando falamos de equidade, não estamos falando de igualdade”, pontua Sherol. “Aquilo que nos é igual é apenas o direito. Temos direitos iguais, mas somos pessoas diferentes, que precisam de equipamentos e acessos diferentes”, afirma.

Nas aulas de Bruno, as discussões sobre equidade costumam levar em conta o contexto dos próprios estudantes. “Eles trazem para a sala de aula uma série de saberes, práticas e vivências, e a partir disso eu tento traçar formas de ensinar e apreender os conteúdos”, relata o professor.

Ele gosta de iniciar o tema da mobilidade tomando por base a circulação dos estudantes pelo bairro. “Saídas a campo permitem olhar e entender o cotidiano. Pedagogicamente, é pelas situações concretas que se torna significativo o trabalho de abstrair, problematizar, comparar e criar hipóteses”, afirma Bruno.

Nas saídas, o professor orienta a turma na realização de pesquisas pelo bairro, nas quais os próprios alunos concebem a temática, levantam os dados e registram os processos, garantindo o protagonismo dos estudantes. Só depois outros elementos complementam o estudo dos territórios em sala de aula, como maquetes, análises de dados, gráficos e tabelas. Entre os temas que já foram debatidos pelos estudantes do professor Bruno nas aulas de Geografia, estão:

  • Aumento da passagem do transporte coletivo e o direito de ir e vir da juventude da periferia;
  • Mulheres e homens no mundo do trabalho na cidade;
  • Espaços públicos da cidade e suas formas de acesso;
  • Relações entre o centro e a periferia no espaço urbano;
  • A favela como espaço da cidade;
  • Presença indígena na cidade;
  • Racismo ambiental.

Para trabalhar a questão da equidade na mobilidade urbana, Sherol ressalta que é essencial promover comparações entre realidades diversas. “Ao unir as pautas de História e Geografia, estudar o próprio território é uma das coisas mais ricas a fazer, mas sem ficar limitado a ele. O estudante precisa desenvolver habilidades de análise do seu território ao mesmo tempo que conhece outros diferentes”, orienta a especialista. 

Existem exemplos de replanejamento urbano em favor da mobilidade, que podem inspirar debates por soluções para diminuir as desigualdades. Paris, na França,  adota gradualmente o conceito de “cidade de 15 minutos”, em que se evita o uso do carro e se chega em apenas 15 minutos a serviços essenciais a pé, de bicicleta ou com transporte coletivo. Copenhagen, na Dinamarca, e Amsterdã, na Holanda, são metrópoles que adotaram a bicicleta como meio preferencial de locomoção.  

No Brasil, Sherol destaca Afuá, uma cidade de 40 mil habitantes, situada no Arquipélago de Marajó, no Pará, como modelo de mobilidade urbana sustentável: lá nenhum veículo motorizado é permitido e a população se locomove de bicicleta. Também há municípios, como Vargem Grande Paulista (SP), que adotaram a tarifa zero no transporte coletivo e a gratuidade está sendo discutida até em metrópoles como a capital paulista. 
De que maneira ações desse tipo impactam os moradores e também podem ser trabalhadas em sala de aula como solução para diminuir as desigualdades no espaço urbano? É evidente que a melhoria da qualidade de vida depende de muito planejamento e, principalmente, de decisões do poder público, mas o olhar crítico e a busca por alternativas mais equitativas pode começar dentro da escola: quanto mais os estudantes se apropriarem do seu território, mais possibilidades eles têm de sugerir melhorias na mobilidade da cidade.

Consultora pedagógica: Sherol dos Santos, mestre em História, pesquisadora com ênfase no ensino de História e escravidão, formadora de professores e integrante do Time de Formadores da NOVA ESCOLA.

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