Dia da Mulher: 8 perguntas para entender as discussões de gênero
Desmistificar ideias errôneas sobre o tema é importante para garantir direitos mais justos para homens e mulheres
POR: Laís Semis
Engana-se (muito) quem pensa que falar de gênero é o mesmo que falar de sexo ou do universo LGBTIQ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersex e queer). Gênero também não é uma questão apenas biológica -- o famoso “você nasceu menino” ou “você nasceu menina” e fim da discussão. O gênero perpassa diferentes áreas dos conhecimento, como as ciências sociais e a psicologia.
Outro equívoco é pensá-lo como sinônimo de discussões ligadas somente à mulher. “Gênero é conceito que fala sobre as relações estabelecidas entre percepções e práticas de feminilidade e masculinidade”, diz Bernardo Fonseca Machado, doutor em antropologia social pela Universidade de São Paulo (USP) e co-autor do livro Diferentes, não desiguais – A questão de gênero na escola. “Gênero é um conceito que fala sobre relações sociais e do que se espera que mulheres façam e do que se espera que homens façam”, explica.
Essa conversa, entretanto, cada vez mais vem recheada de desinformações. A consequência é um combate (perigoso) a qualquer fala sobre o tema. Apesar de ser um tema tratado há décadas pela escola, recentemente ele ganhou extrema problematização. “Atuei em sala de aula e, em 2010, essa discussão não era uma questão”, relembra Bernardo. “A partir de 2013, ela se torna um pepino na escola e as pessoas ativamente falam contra a ‘ideologia de gênero’, que desqualifica o que seria o debate”. O gênero virou um inimigo da família – embora, por diversas vezes, ele pudesse ser um fator a protegê-la e a dar um leque mais igualitário de opções para as mulheres e também para os homens, que também são moldados a seguir padrões, muitas vezes, limitantes. Veja, a seguir, as oito principais perguntas para desmistificar o debate sobre a questão de gênero, e clique nas setas laterais para ver ou suprimir as respostas.
1) Discutir gênero é falar de "ideologia de gênero"?
Não. Gênero não é uma “ideologia”, uma visão de mundo ou instrumento de doutrinação. Como mencionado, o tema é abrangente e aborda relações sociais sobre feminilidade e masculinidade. O termo começou a se propagar nos ambientes escolares de forma equivocada. “Criou-se um imaginário de que falar sobre gênero é doutrinar as pessoas para não terem uma sexualidade ou terem uma sexualidade LGBT”, aponta Bernardo.
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Para ele, é preciso esclarecer a proposta das discussões de gênero. “Quando a gente explica que estamos falando de diferenças entre homens e mulheres que geram desigualdades, que é falar de consentimento, de violência, que é oferecer ferramentas para falar e agir sobre essas coisas, as pessoas entendem”.
É compreendendo o tema que as pessoas podem identificar situações de risco, se sentir mais protegidas não apenas no ambiente escolar como também em casa, e garantir seus direitos. De acordo com o antropólogo, situações escolares podem marginalizar, por exemplo, pessoas LGBT. Essa marginalização pode acontecer em situações de bullying, que geram estudantes mais reprimidos, violências físicas e verbais e até desistências da escola.
Uma pesquisa apresentada à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Congresso, em 2016, ouviu 1.016 estudantes LGBT com idade entre 13 e 21 anos. Além do sentimento de insegurança na escola por parte de 60% desses estudantes, 73% deles disseram já terem sido agredidos verbalmente e 27% fisicamente. A pesquisa também mostra como a escola tem falhado no combate ao preconceito: 36% dos entrevistados consideram a escola ineficaz para evitar agressões.
Mais do que se omitir, algumas vezes, a escola até colabora para que esse ambiente acolhedor não aconteça. “Muitas pessoas trans, por exemplo, comentam que são convidadas a se retirar pela própria direção por não terem o ‘perfil’ da escola”, revela Bernardo. “Isso é uma forma da própria instituição – pública ou privada – negar a elas o seu direito constitucional de estudar”.
2) Como a desinformação afeta os debates sobre gênero?
As desinformações acabam gerando uma espécie de fake news na Educação em relação ao que é gênero e qual é a proposta de discussão do tema, propagando ideias falsas e mitos. Estes mitos desqualificam o debate nas escolas e atuam no imaginário dos pais, gerando medo e repulsas.
Uma das principais desinformações que circulam é de que existiria uma “ideologia de gênero” – o termo “ideologia” colocaria o gênero como uma visão, uma doutrinação e, consequentemente, um instrumento de dominação a ser combatido.
Com base no imaginário da “ideologia de gênero”, surgem outras ideias errôneas, como a de que a escola estaria estimulando a sexualização precoce das crianças e interferindo na orientação sexual de forma alarmante. A criação de banheiros mistos, por exemplo, é vista como uma medida que torna as meninas vulneráveis a serem estupradas. “É um termo falacioso porque ele desqualifica um debate que vem sendo travado desde a década de 60 em termos analíticos-científicos e que atravessam diversas áreas”, diz Bernardo. “O termo mascara a discussão de gênero em si. Isso é uma forma de causar desinformação”.
Neste sentido, a escola também tem o papel de fazer com que as informações que crianças e jovens recebem por diferentes lados sejam analisadas para sair do senso comum, levando em conta os conhecimentos científicos sobre o tema. “Todas essas fake news tem como base o mundo do senso comum e como hoje a informação, e não o conhecimento, tem circulado de maneira que há décadas atrás era impensável. Apenas a informação não basta”, pontua Maria Cristina Cavaleiro, professora do curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e coordenadora do grupo de estudos e pesquisa sobre gênero e diversidade sexual.
Além da escola, Maria Cristina também aponta que as universidades falham em preparar os futuros professores para essas discussões. Ela, que também é formadora em escolas, diz que há muita dúvida por parte dos professores. “O conhecimento deles também está no nível de senso comum”. Sem essas informações, eles não podem esclarecer à comunidade escolar e aos familiares do que se trata o debate. “Há um amedrontamento de que se incentive uma mudança de sexo, como se os alunos fossem deixar de ser homem ou mulher. E não é isso. Há também uma obsessão com a ideia da prática sexual”, reflete a professora.
A consequência da ignorância sobre a discussão seria um fator que colaboraria para reverberar e reproduzir violências dentro e fora da escola. Desde violências mais “brandas”, como é o caso do bullying, até as mais extremas, como os feminicídios.
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Assim, muito mais perigoso do que debater gênero é não fazê-lo. Considere, por exemplo, temas como gravidez na adolescência ou a violência doméstica contra mulheres. “Na verdade, é o desconhecimento e a ignorância que promovem muito mais vulnerabilidade do que o conhecimento”, aponta Maria Cristina.
3) Eu preciso falar de gênero na escola?
Diante de qualquer possível preconceito sobre o tema, o primeiro alerta de Maria Cristina é: “trabalhar com gênero e sexualidade não é destruir famílias nem apagar preceitos morais familiares”. O papel da escola não é apontar o certo e o errado ou incentivar qualquer comportamento, mas apresentar os temas a partir de preceitos científicos. “Que são aqueles que vão dizer que a diversidade faz parte das nossas espécies. Compreender isso é possibilitar que as pessoas aprendam a respeitar e lidar com a diversidade”. Com isso, a escola leva os estudantes a saírem do senso comum e compreender o mundo em suas múltiplas relações.
Além de combater preconceitos, conversar sobre gênero também ajuda no combate aos estereótipos que delimitam papéis e comportamentos a homens e mulheres, limitando incentivos de acesso a conhecimentos de áreas específicas e até escolhas por parte dos estudantes. Um exemplo clássico é a ideia errônea de que meninos são melhores na área de Exatas e meninas na área de Humanas. “Isso não é natureza, é fruto de uma Educação que bloqueia e não incentiva a potencializar as habilidades de Exatas nas meninas”, explica Maria Cristina. A consequência é que elas optem menos por uma carreira na engenharia, por exemplo.
Essas construções, entretanto, extrapolam a esfera educacional, já que a escola atua também na formação dos estudantes enquanto cidadãos. “Estamos falando do que eles vão se tornar ao longo dos anos”, diz o antropólogo Bernardo. Ele aponta que algumas expectativas sobre os papéis – como, por exemplo, de que meninos precisam se mostrar viris e associam isso à demonstração de força – podem perpetuar práticas de violência. “Essas expectativas podem ser coniventes com os meninos exercendo sua força diante das mulheres para obter suas vontades. O que é muito cruel, porque produz uma violência contra outro”.
Exemplos de como isso afeta o comportamento de homens e mulheres não faltam: 42% das mulheres relatam ter sofrido assédio sexual, segundo pesquisa do Datafolha de 2017. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra que, em 2017, o Brasil registrou 164 casos de estupro por dia. No mesmo ano, 946 mulheres foram mortas em crimes de ódio motivados pela condição de gênero (muitas vezes por motivos como o companheiro não aceitar o fim do relacionamento), o chamado feminicídio. São 134 mortes a mais do que em 2016. Enquanto isso, apenas 22% das mulheres vítimas de agressão no último ano procuraram um órgão oficial para denunciar seu agressor, aponta o levantamento “Violência Contra as Mulheres”, encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
4) por que essa conversa não pode ficar a cargo somente dos pais e responsáveis?
Um dos riscos é comprometer a formação dos futuros cidadãos. “A cidadania não está dada na nossa sociedade, a gente vai aprendendo, e a escola colabora com isso”, pontua a professora Maria Cristina. O espaço também é de ensino do respeito mútuo. Diferente do que pode acontecer na socialização familiar, em que, geralmente, os membros compartilham ideias próximas, a instituição escolar proporciona uma pluralidade diante da diversidade entre os indivíduos que a frequentam. É principalmente na instituição escolar que nós convivemos pela primeira vez com o diferente de nós, diz Maria Cristina. “Encontramos pluralidade de ideias, modos diferentes de ser e se apresentar no mundo, diferentes religiões”.
Em alguns casos, esse debate na escola pode até mesmo alertar sobre situações que acontecem dentro do ambiente familiar e ferem os indivíduos. “A violência, por vezes, está dentro do ambiente doméstico, do núcleo familiar”, alerta Maria Cristina.
Até aqui você pode estar pensando em sua própria experiência pessoal, em que a ideia de um pai, um familiar ou ainda um conhecido da família praticar uma agressão física ou sexual contra uma criança ou adolescente é um absurdo. Mas os números mostram que não. O Atlas da Violência de 2018, por exemplo, mostra que dos 49,4 mil casos de estupro registrados no ano de 2016, 13 mil ocorreram dentro das casas das vítimas. Vale dizer que muitos dos casos de violência sexual dentro de casa não chegam às estatísticas por conta da desinformação, da vergonha e do medo que as vítimas têm de expor o ocorrido.
Os dados também visibilizam como crianças e adolescentes são vulneráveis à situação. De acordo com eles, 50,9% das vítimas de estupro são crianças menores de 13 anos, enquanto 17% são adolescentes. E não se tratam de situações pontuais: 42,4% das vítimas assumiram ter sido estupradas mais de uma vez.
A violência sofrida pelas mulheres também acontece, em grande número, no ambiente familiar. Segundo o estudo “Violência Contra as Mulheres”, 23,8% das agressões são cometidas por cônjuges; 21,1% por vizinhos; 15,20% por ex-cônjuges; 7,2% por pais ou mães e 6,3% por amigos. “A escola também é responsável por oferecer palavras e conceitos que ajudem os alunos a identificar violências do ambiente familiar”, pontua Bernardo. “Se a criança não sabe o que é consentimento, a gente pode estar negligenciando uma violência que acontece com a própria criança, com a mãe ou um irmão dentro do núcleo familiar”.
5) Uma escola que não debate gênero está livre dessas questões?
Não. Seria uma ilusão pensar que nenhuma das construções de gênero da sociedade se reflete dentro da escola. “Os estereótipos sociais também atravessam a Educação. A escola construiu um modelo de aluno e de aluna, bem como de professor e professora”, aponta Maria Cristina. “A ideia da professora é aquela que vai sempre cuidar, trazer o carinho, a sensibilidade. O professor está relacionado ao campo da autoridade e da racionalidade”.
As diferenças aparecem nos papéis que se espera que eles desempenhem e também se comportem. Por exemplo: quem fica responsável pela decoração nos eventos da sua escola? E com as atividades que exigem força ou uso de ferramentas? Qual é a reação dos colegas quando uma professora fala mais alto e se impõe? A reação é a mesma quando o interlocutor dessa ação é um professor?
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Essas ideias são tão enraizadas que explicam por que 97,6% dos educadores que atuam com bebês e crianças de até 5 anos de idade são mulheres, como mostra o Censo Escolar de 2017. “Temos menos homens trabalhando na Educação porque a ideia do cuidado fica restrita à mulher”, explica a professora Maria Cristina.
Outras ideias equivocadas vão sendo propagandas ao longo das etapas da Educação Básica. Bernardo aponta, por exemplo, como o capricho na entrega das tarefas é colocado como uma das formas de avaliação dos alunos nos anos iniciais do Fundamental — outra etapa em que a maioria dos profissionais são mulheres. “Esse critério é, aos olhos de muitos alunos e pais, muito feminino”, explica o antropólogo. A ação pode ser prejudicial para meninas (das quais são esperados trabalhos sempre feitos com capricho) e para meninos (em que a falta dele é relativizada pela questão do sexo). Nessa linha, é esperada uma menor dedicação deles e maior delas – que são comumente mais identificadas com o estereótipo de serem mais caprichosas, cuidadosas e estudiosas.
Até a forma como alguns conteúdos são tratados têm influência direta da visão que a sociedade tem de homens e mulheres e o que é esperado de cada um dos gêneros. Como exemplo, Bernardo cita o processo de fecundação. A versão que os livros didáticos contam e os professores reproduzem é de que enquanto os óvulos estão parados, no aguardo de serem fecundados, os espermatozóides têm uma postura ativa: nadam até o óvulo. “Isto está muito mais ligado à expectativa das relações do que ao processo biológico”, argumenta o antropólogo. De acordo com ele, desde os anos 90, há pesquisas que afirmam que os óvulos também atuam de maneira ativa. “Além dos espermatozóides nadarem meio de lado, os óvulos possuem enzimas em suas bordas que são responsáveis também, de certo modo, por selecionar alguns gametas masculinos e trazê-los para dentro”, explica. A narrativa ensinada, no entanto, é atravessada por expectativas de gêneros.
Há, ainda, o estereótipo de homens e mulheres apresentados nos livros didáticos que afetam a autoimagem dos estudantes. “Parece que todas as invenções são dos homens. Diante disso, as meninas acabam acreditando que não têm esse potencial”, exemplifica Maria Cristina. Ela acredita que, se não houver sensibilidade para identificar e filtrar esses estereótipos, eles serão naturalizados.
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E este fator influencia até mesmo a valorização da carreira docente. “A escola é vista muitas vezes como um espaço feminino, o que leva a sociedade a não qualificar tanto as discussões e a própria instituição”, aponta Bernardo. Apesar delas representarem 80% dos docentes da Educação Básica, de acordo com dados da Prova Brasil 2015, as mulheres são predominantes até o cargo de direção. A nível de secretarias e Ministério da Educação (MEC), elas perdem as cadeiras mais altas para os homens. Dos 59 ministros da Educação que já passaram pelo MEC, apenas uma mulher ocupou o cargo (leia mais aqui). “Discutir gênero na escola também é repensar o papel que a gente dá à própria escola”, diz Bernardo.
6) Feminismo para quê?
Você pode discordar de como algumas correntes do movimento feminista se comportam, com parte do discurso ou mesmo não ter a menor afinidade com as ideias que ele levanta. Mas as conquistas das mulheres ao longo dos séculos são inegáveis: se você é mulher e concluiu a escola; se você chegou ao ensino superior; se você trabalha fora de casa de forma assalariada; se você não é obrigada por lei a pedir autorização ao seu marido para trabalhar; se você tem a opção de usar contraceptivos; se você tem a opção de se divorciar de um casamento infeliz; se você pode fazer uma denúncia em caso de agressão doméstica; se você tem a opção de ter a guarda dos seus filhos em uma separação; se votou nas últimas eleições... agradeça ao movimento feminista.
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“Se não fosse o movimento feminista, não teríamos muitas conquistas”, diz Maria Cristina Cavaleiro. “Isso é diferente de exigir que todo mundo seja ativista”. Dentro desse campo também é necessário desmistificar algumas ideias, como a de que o movimento quer que as mulheres dominem o mundo ou que a proposta do movimento é disseminação de ódio contra os homens. “A luta é para desobjetificar a mulher e conquistar direitos”, esclarece a professora.
7) O que a discussão sobre gênero tem a ver com reforma da previdência e política?
Atualmente, a Previdência Social considera que há diferenciação (e necessidade de equiparação) entre homens e mulheres. Ela reconhece que a mulher é a principal responsável pelas tarefas domésticas e cuidado com os filhos (a chamada segunda jornada não remunerada). A forma de “compensação” encontrada pela Previdência é proporcionar um tempo menor de contribuição para a aposentadoria das mulheres, bem como de idade mínima, quando comparada aos homens. Pelas regras em vigor, essa diferença é de cinco anos.
No entanto, a proposta de reforma da previdência encaminhada ao Congresso em fevereiro de 2019 diminui essa diferença de idade mínima para três anos e equipara o tempo de contribuição para os dois gêneros. No caso dos professores, que possuem uma aposentadoria especial (leia mais aqui), essas diferenças são extintas. “A gente só pode falar que essa equiparação na previdência é sinônimo de igualdade quando todas as mulheres tiverem a mesma oportunidade na vida social que são garantidas ao homem. No entanto, hoje ele é o único mecanismo que reconhece a divisão social do trabalho”, diz Maria Cristina. As discussões da reforma da previdência ainda estão em fase inicial. Até lá, as mudanças propostas ainda poderão ser revistas e alteradas.
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Outra discussão recente que ganhou os jornais e tem a influência de gênero são as candidaturas laranjas nas eleições presidenciais que aconteceram em 2018. As apurações mostram que 53 candidatos são suspeitos de serem laranjas – ou seja, teriam feito uma campanha de fachada apenas com a finalidade de receberem uma verba de alto valor pelo partido e a repassarem a outras pessoas. Das 53 candidaturas suspeitas de serem laranjas, 49 eram mulheres. Uma das “justificativas” usadas para o alto número de mulheres entre os laranjas é de que há uma cota de candidatas mulheres que os partidos precisam preencher. Assim, elas entrariam apenas como fachada para cumprir a cota. “A gente tem que tomar cuidado para que isso não justifique voltar atrás na decisão. As cotas são importantes. O que as mulheres não têm é tempo de participação na vida política”, diz Cristina.
Tempo este que se mostra obstáculo também em outras situações. Em sua realidade como professora na Educação Superior, ela também chama a atenção para outro movimento muito comum nas salas de aula de graduação: “eu nunca vi em um curso de predominância masculina, homens levarem crianças para as aulas. No entanto, as minhas alunas que engravidam – mesmo as casadas – levam as crianças para a aula à noite”, problematiza a docente.
E, mais claramente, as disparidades de gênero aparecem nas discussões de relacionamento. Para Maria Cristina, há uma naturalização da violência em relações que vão das paqueras aos relacionamentos. Um exemplo é a campanha do “não é não”, que visa à conscientização sobre o assédio sexual no carnaval (leia mais aqui). Críticas e piadinhas não faltam sobre o movimento. “Na sociedade patriarcal não é difícil reunir argumentos [para deslegitimar a ação]. Podem ser os mais rasos, mas eles existem, como a fala ‘então, agora ninguém mais paquera?’”, exemplifica a professora de Pedagogia. “Não é isso. Paquera é paquera, violência e agir contra a vontade das mulheres é outra coisa”, explica. Para ela, são esses equívocos perpetuados que dificultam as discussões sobre gênero. “Mas isso denota ainda mais a importância da escola e da universidade fazerem esse debate”.
8) Homens ganhando mais e mulheres cuidando da casa são coisa do passado?
Não. Apesar do que algumas pessoas vivem no âmbito individual, na média do Brasil inteiro, as mulheres ainda trabalham quase o dobro do tempo em tarefas domésticas e cuidado de pessoas (como filhos, por exemplo) em comparação aos homens. “Algumas pessoas têm uma experiência mais simétrica nas relações entre homens e mulheres. Mas, quando tratamos de um assunto como esse, uma experiência individual não dá conta do contexto nacional”, explica Bernardo.
Como exemplo, ele cita os dados do levantamento “Outras formas de trabalho”, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), de 2017, realizada pelo IBGE. A pesquisa mostra que enquanto os homens se dedicam 10,8 horas semanais a essas tarefas, o tempo de dedicação delas é de 20,9 horas por semana. Entre as mulheres que estão no mercado de trabalho, a média de horas dedicadas aos afazeres domésticos e cuidados é de 7,8 a mais do que os homens.
A pesquisa também mostra que há diferença até mesmo entre as tarefas consideradas “femininas” e “masculinas”. Enquanto 63,1% deles se responsabilizam por pequenos reparos ou manutenções em casa, elas são as principais responsáveis por preparar ou servir alimentos (95,6%) e cuidados com limpeza e manutenção de roupas e sapatos (90,7%). As taxas de homens que realizam essas tarefas é de, respectivamente, 59,8% e 56%.
Bernardo pondera ainda que em lares de classes sociais mais favorecidas pode haver distribuição mais igualitária entre homens e mulheres, mas também há delegação da atividade doméstica para uma terceira pessoa: a faxineira ou a empregada doméstica. “A experiência do casal pode ser mais igualitária, mas quem é a pessoa que está realizando o serviço doméstico que os dois não estão? Geralmente uma mulher, e uma mulher negra”.
No mercado de trabalho, elas também ainda estão atrás deles. O estudo “Estatísticas de Gênero”, publicado pelo IBGE, mostra que as mulheres recebem salários que equivalem a 76,5% dos rendimentos dos homens. Realidade de um passado distante? Não, os dados são de 2016.
E a diferença não se dá por qualificação. Ao longo do percurso educacional, as mulheres aparecem em maior número do que os homens. Os índices são mais altos entre mulheres no que diz respeito às taxas de alfabetização entre 15 e 65 anos, de frequência escolar no Ensino Fundamental, de frequência escolar entre pessoas de 18 a 24 anos, de conclusão do Ensino Médio e também nas de Ensino Superior completo.
Além disso, a maternidade também afeta as mulheres no mercado de trabalho. Um levantamento realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) com 247 mil mulheres com filhos entre 25 e 35 anos mostrou que a probabilidade de demissão chega a 10% no mês seguinte ao retorno ao trabalho. Em até dois anos após a licença-maternidade, metade delas perderam o emprego.
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