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Veja como Chico Buarque ajuda na construção da identidade dos alunos

Projeto deu um novo significado a uma das regiões mais vulneráveis do Rio de Janeiro

POR:
Camila Cecílio
Professor José Marcos Couto Júnior e os alunos do Projeto As Caravanas: Limites da Visibilidade, em um palco de teatro no Rio de Janeiro, brincando com as cortinas
O professor José Marcos Couto Júnior levou seus alunos para dentro de um teatro Foto: Valda Nogueira/Nova Escola

Uma música que fala sobre como os moradores de comunidades periféricas são vistos na Zona Sul do Rio de Janeiro. É o que conta As Caravanas, do cantor e compositor carioca Chico Buarque. A canção, que é uma crônica sobre as desigualdades sociais e os reflexos da escravidão no Brasil, foi o que inspirou o professor José Marcos Couto Júnior a dar continuidade a um projeto que mudaria a vida de alunos da EM Áttila Nunes, de Realengo, uma das regiões mais vulneráveis da capital fluminense – e a 50 quilômetros da orla da Praia de Copacabana. 

Professor de História, José Marcos viu na letra a oportunidade para reforçar o que já vinha trabalhando com as turmas do 8º e 9º ano desde 2017, que era a questão da inserção do negro na sociedade e a invisibilidade social. Após ouvir a música, em 2018, um novo objetivo foi traçado: ampliar a visão de mundo desses estudantes. Para isso, juntamente com a também professora de História Ana Beatriz Ramos de Souza, levou os alunos para conhecer outros territórios culturais dentro e fora da escola. O que foi uma novidade para a maioria deles, que nunca havia ido a teatros e museus ou nem mesmo saído do bairro. “Sempre disse nas minhas aulas: o mundo é muito maior do que a Capitão Teixeira”, lembra o educador, se referindo à rua principal de Realengo. 

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Nas entrelinhas das letras de Construção, Geni e o Zepelim, Ópera do Malandro, dentre outras canções de Chico Buarque, nascia o projeto As Caravanas: Limites da Visibilidade, que deu a José Marcos o Prêmio Educador do Ano 2018. A iniciativa se consolidou, por exemplo, pela ampliação de mundo dos alunos, desenvolvimento da escrita a partir do estudo de letras de músicas, debates sobre o espaço social onde vivem e estão inseridos na realidade da cidade e do país. 

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O trabalho é desenvolvido há três anos e já passou por diversas fases. A princípio, o tema mais urgente era a questão racial, segundo o professor. Foi quando ele e a colega adotaram O Papel e o Mar, enredo da escola de samba Renascer de Jacarepaguá, inspirado na obra homônima. A letra fala sobre personagens invisíveis na história do Brasil, como João Cândido, conhecido como o Almirante Negro, líder da Revolta da Chibata (1910), e Carolina Maria de Jesus, uma das primeiras escritoras negras do país, autora de Quarto de Despejo (1960). 

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Como posso desenvolver esse projeto na minha escola?  

O projeto pode ser desenvolvido em escolas localizadas em regiões de vulnerabilidade social, como Realengo, mas ter uma realidade semelhante à da EM Áttila Nunes não é o suficiente para fazer com que a empreitada dê certo. José Marcos afirma que, para ser replicado, é preciso que toda a comunidade escolar acredite no projeto e entenda sua verdadeira importância. Ele diz que o As Caravanas só deu certo porque os responsáveis viram, a partir das primeiras atividades, que as crianças estavam mudando o jeito de pensar e falar. “Cheguei a encontrar pais que diziam que estavam ouvindo Chico Buarque por causa dos filhos”, conta. Houve também mobilização das famílias para ajudar os estudantes a irem a passeios culturais.

“Acho que a principal dica é: você precisa compreender o contexto e a realidade de sua comunidade e tentar dialogar com ela. Eu poderia falar que, em uma comunidade onde os alunos sofrem com violência, que seja carente e tenha um IDH baixo, seria fácil replicar esse projeto, mas não necessariamente. E isso porque, às vezes, não compram a nossa ideia. Então o sucesso da iniciativa tem muito a ver com a comunidade toda abraçar a causa”, ressalta o professor. 

Ter afinidade e empatia em relação aos alunos também é importante para o desenvolvimento do projeto. De acordo com José Marcos, isso foi o diferencial do trabalho. “A gente percebia neles um baita potencial, mas outros professores às vezes não percebiam isso. Nós tentávamos buscar esse potencial mesmo quando eles pareciam desmotivados, tentávamos outros caminhos que não fosse o da sala de aula ou da questão cognitiva para resolver problemas ou conflitos e fez toda a diferença”. 

as caravanas: limites da visibilidade - por José marcos couto junior e ana beatriz ramos de souza

Professor José Marcos Couto Júnior durante uma aula no Rio de Janeiro, projeto As Caravanas: Limites da Visibilidade
Foto: Valda Nogueira/Nova Escola


Indicação: Fundamental II e Ensino Médio
Disciplinas: História, Português, Geografia, Arte
Duração: de 1 a 3 anos

O que é o projeto?
Esse é um projeto que tem como objetivo, a princípio ao longo de três anos, criar uma discussão de desnaturalização do espaço, de fomentação de identidades, para que os alunos valorizem o lugar onde eles estão e, ao mesmo tempo, percebam que esse espaço não é limitador. É um trabalho para promover o autoconhecimento, a criação de identidade, e, claro, para mostrar a esses estudantes que eles podem buscar coisas para além de onde eles vivem.   

Do que vou precisar?
Como se trata de um vasto trabalho de pesquisa, são necessárias muitas cópias de letras de músicas, conteúdos em vídeo e também de um aparelho de som para ouvir as músicas. “Além disso, foi utilizado um caderno diferenciado onde os alunos podiam escrever seus textos, que no final rendeu a coletânea Que sejam lidos, que sejam vistos. Como uma parte é diretamente ligada à música, se houver a possibilidade, podem ser envolvidos alguns instrumentos para que os alunos que têm vertente musical possam tocar ou experimentar. Mas, de todo modo, a base do projeto é papel, som, projetor e muita ideia”, explica José Marcos. 

Quais os objetivos trabalhados na aprendizagem?
História é muito importante para criar ferramentas para que os alunos sejam críticos. O principal objetivo de aprendizagem trabalhado era o de fomentar a criticidade, apresentar um novo repertório cultural a eles e, ao mesmo tempo, valorizar a cultura que já tinham. Mesmo sem saber, o projeto foi feito em consonância com uma série de competências da BNCC, entre elas:

  • Conhecimento;
  • Pensamento científico, crítico e criativo;
  • Repertório cultural;
  • Comunicação;
  • Trabalho e projeto de vida;
  • Responsabilidade e cidadania.


E os desafios? Como encará-los?
“O maior desafio encontrado foi justamente no começo: a falta de apoio institucional. Fizemos muita coisa com dinheiro do nosso próprio bolso, realizando semanas de consciência negra, tivemos alguns convidados para falar sobre, por exemplo, Mulheres Negras, Feminismo, e custeamos todo o evento, inclusive a ida dos meninos ao teatro. Então esse apoio institucional é fundamental”, diz o professor. “Às vezes temos dificuldades para replicar determinadas ideias porque elas são pensadas simplesmente como boas práticas que podem ser replicadas, mas eu entendo que nós precisamos, na verdade, compor e formatar políticas públicas educacionais que fomentem boas práticas. Se não tivermos isso partindo da lógica institucional fica difícil trabalhar. Depois que o projeto deslanchou, recebemos muito apoio, mas até chegar nesse ponto foi bastante desafiador”, explica José Marcos. 

E no final? O que meus alunos vão aprender?
Para o professor, os maiores aprendizados da turma foram em relação à questão da formação da identidade do pensamento crítico. “Alguns alunos terminaram o ano desconfiando de tudo e a gente sempre disse para eles desconfiarem de tudo, inclusive da gente. Se eles fizessem esse processo, se tentassem ler nas entrelinhas ou começassem a querer entender da onde vem as ideias, de como as coisas são formadas, sem aceitar tudo de cara, a gente achava, e acho ainda hoje, que estamos formando alunos mais bem preparados para o mundo”, afirma.

“Então acredito que os maiores aprendizados foram ganhar ferramentas e bagagem para a vida real, para um mundo pós-escola.” 

José Marcos Couto Júnior é formado em História e Mestre em Educação pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em 2018, foi eleito Educador do Ano no Prêmio Educador Nota 10. Servidor da Prefeitura do Rio de Janeiro há 10 anos, atua desde fevereiro como diretor na Escola Municipal Professora Ivone Nunes Ferreira, no Rio de Janeiro.

 

 

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