Recomposição de aprendizagens: os desafios e os caminhos em Língua Portuguesa
O que priorizar para desenvolver a leitura e a escrita dos alunos dos Anos Iniciais do Fundamental neste componente curricular estratégico para o percurso escolar e para a atuação cidadã
POR: Nairim BernardoAo longo do ensino remoto emergencial, durante a pandemia, uma grande preocupação dos professores e das famílias foi a alfabetização, condição básica e necessária para o aluno realizar seu percurso escolar e atuar como cidadão. Devido à sua importância, a conquista da leitura e da escrita está sempre cercada de expectativas, inclusive das próprias crianças. Mas, sem o contato direto entre docentes e estudantes, ficou a dúvida: seria possível alfabetizar à distância?
A nota técnica Impactos da Pandemia na Alfabetização de Crianças, do Todos Pela Educação, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) de 2012 a 2021, revela que o Brasil atingiu o maior patamar (40,8%), desde 2012, de crianças de 6 e 7 anos que, segundo seus pais, não sabem ler e escrever. O número passou de 1,4 milhão em 2019 para 2,4 milhões em 2021.
“A partir do 2º ano do Ensino Fundamental, mas especialmente nos 3º, 4º e 5º anos, a impossibilidade de ler e de escrever ou a dificuldades nessas capacidades interfere frontalmente na possibilidade de acessar e de compreender os textos escritos, de gêneros diversificados e dos diferentes campos de atuação previstos na BNCC: vida cotidiana, artístico-literário, práticas de estudo e pesquisa e vida pública”, comenta Cristiane Cagnoto Mori, mestre em Linguística, professora do curso de Pedagogia e coordenadora do curso da Especialização em Alfabetização do Instituto Singularidades. “Compromete também as aprendizagens não apenas diretamente relacionadas à Língua Portuguesa, mas também dos outros componentes curricula res.”
Além da vida escolar, uma formação precária e deficiente nas competências escritora e principalmente leitora também dificulta que os sujeitos acessem e participem da vida pública, pois não compreendem os gêneros jornalísticos, os que disseminam os conhecimentos científicos e os que viabilizam a participação em eventos da vida em sociedade.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) estabelece a alfabetização como foco principal nos dois primeiros anos do Ensino Fundamental, mas agora tem sido necessário ampliar essa prioridade para os outros anos. Educadores estão percebendo que alunos de 3º, 4º e 5º anos também estão com mais dificuldade para ler, escrever e interpretar textos do que seria o esperado para a faixa etária.
Aí entram em cena a recomposição de aprendizagens e o continuum curricular. Na prática, isso significa que, apesar de algumas experiências exitosas, muitas habilidades não foram plenamente desenvolvidas no ano devido e agora serão trabalhadas no ano escolar corrente.
Priorização curricular e avaliação diagnóstica
Katia Smole, diretora do Instituto Reúna, organização que atua pela implementação e o acompanhamento da BNCC, diz que para isso é necessária uma série de ações articuladas, que começam pela priorização curricular.
“A escola precisa olhar para o currículo e entender que agora estamos numa situação de emergência, o que torna algumas habilidades mais importantes do que outras. A pergunta é: como organizar o que o aluno não aprendeu no biênio pandêmico de forma que ele possa avançar sem que isso leve um tempo gigante e acarrete mais perdas?”, questiona a especialista. “A recomposição de aprendizagens vai redefinir o futuro da Educação não só neste ano, mas também nos que virão.”
Cristiane aponta que a priorização curricular depende da realidade de cada escola, mas um princípio que pode orientá-la, no caso de Língua Portuguesa, é que o uso da língua é mais importante que seus aspectos descritivos e normativos.
“Habilidades ligadas à compreensão leitora e à análise das características do gênero, bem como habilidades ligadas ao processo de produção textual [como planejamento, escrita, revisão e reescrita do texto] devem ser priorizadas relativamente àquelas que envolvem descrição e classificação metalinguística. A ampliação e a diversificação do repertório leitor também são fundamentais.”
Após a definição do currículo prioritário, os professores precisam aplicar avaliações diagnósticas para saber o quão perto ou distantes os alunos estão dele. Kátia sugere olhar para as habilidades focais e utilizar vários instrumentos para o diagnóstico.
Para entender a relação da turma com a leitura, por exemplo, a leitura compartilhada de um texto será mais eficaz do que uma avaliação escrita. Também é importante dar seguimento ao processo. “É a continuidade da avaliação que apoia os estudantes. O professor tem de fazer o primeiro diagnóstico e avaliações processuais [formativas] para ver se o plano inicial está indo na direção que ele desejava”, observa a diretora do Instituto Reúna.
Desafios: tempo escasso, turmas heterogêneas e perda de habilidades
Na recomposição de aprendizagens em Língua Portuguesa, uma das maiores dificuldades é a gestão do tempo. As habilidades leitoras e de escrita demandam várias ações para serem consolidadas. No retorno ao ensino presencial, isso pode esbarrar na decisão do professor de avançar para outras habilidades. Além disso, professores de 3º, 4º e 5º anos que nunca trabalharam com turmas de alfabetização podem ter problemas para lidar com crianças que apresentam dificuldades mais básicas.
“O tempo escolar curto é particularmente algoz nessa situação, assim como a ausência de professores auxiliares nas salas. Escolas que puderem contar com horários específicos no contraturno para atividades de recomposição e com docentes auxiliares no período regular terão mais oportunidades de vencer os desafios”, destaca Cristiane.
Ela aponta que a heterogeneidade das turmas, que tende a ser maior nesse momento, uma vez que cada estudante viveu de forma muito singular o ensino remoto, também aumenta o desafio do planejamento das atividades.
Para Kátia, um ponto que pode escapar à atenção dos professores, mas que principalmente nos Anos Iniciais é relevante, diz respeito à perda de habilidades gerais e básicas de estudar, que também devem ser avaliadas. “Em dois anos de ensino remoto, os estudantes não só deixaram de desenvolvê-las, mas também perderam o hábito de registrar o que escutam, escrever à mão, aprender com os colegas. Existe uma dinâmica escolar que na tela aconteceu de modo muito diferente.”
Narrativa pessoal e contato próximo com textos
Na Escola de Educação Básica e Profissional do Centro Pedagógico da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte (MG), Juliana Ferreira de Melo, professora de Língua Portuguesa de duas turmas do 4º ano, trabalha com o gênero diário desde 2015. Ela conta que um dos instrumentos que utiliza para o diagnóstico é a escrita pessoal, atividade que manteve no retorno presencial.
“Agora, quando eu faço a proposta de narrativa de si, consigo ver como os alunos estão escrevendo para avaliar qual é o domínio da língua escrita que eles têm. Quando pergunto ‘como foi sua experiência de estudo online e o que espera agora presencialmente?’, alguns escrevem três parágrafos e fazem uma comparação entre passado, presente e expectativas para o futuro, usam o vocativo [elementos gramaticais próprios do tipo de texto], a assinatura e a data. Já outros escrevem duas ou três frases apenas. O grupo é heterogêneo”, ressalta.
Entre as dificuldades que ela observou com mais frequência nos seus estudantes estão localizar informações explícitas em uma história, deduzir informações e misturar letras bastão maiúscula, minúscula e letra cursiva.
Segundo Juliana, para superar esses pontos, o foco das suas aulas sempre é o contato com textos: trechos escritos que o aluno interpreta silenciosamente, livros lidos pela professora, leitura compartilhada, ida semanal à biblioteca e atividades de escrita.
Diferentes estratégias de reforço escolar
A escola do Centro Pedagógico da UFMG é de tempo integral, e um dos projetos que já era realizado, e que agora soma-se às estratégias de recomposição de aprendizagens, é o dos grupos de trabalho diferenciados (GTDs).
Três vezes por semana, durante uma hora e 20 minutos, são oferecidas aulas de reforço dos componentes curriculares e de ampliação curricular para grupos de até 15 alunos. A professora Juliana, por exemplo, é responsável por um desses GTDs de “Palavras Mágicas” e orienta uma professora em formação, uma vez que a escola recebe estagiários da Pedagogia e das licenciaturas da UFMG que atuam como auxiliares.
Todos os estudantes podem escolher de quais GTDs querem participar, mas, em alguns casos, os professores dão indicações com base nas necessidades de aprendizagem observadas em cada um.
No grupo, que nasceu da parceria com Karine Fernandes, aluna do curso de Letras da UFMG, a professora une música, poesia e ludicidade com as palavras na leitura e na escrita. Ela propõe diversas atividades de escrita para aperfeiçoar as habilidades ligadas à palavra e à construção de sentido no texto, o que é muito proveitoso para estudantes com dificuldade em interpretação de textos, por exemplo.
A especialista Katia Smole considera a iniciativa dos grupos de trabalho interessante e propõe alternativas para instituições de ensino com tempo regular realizarem propostas similares.
“Não dá para esperar todas as escolas serem de tempo integral para fazer apoio pedagógico. A escola pode fixar uma hora que o aluno fica a mais, ofertar algo no sábado, ou a professora pode organizar um dia em que vai trabalhar só leitura, por exemplo. Não existe solução perfeita, mas também não dá para dizer que não tem solução nenhuma.”
De acordo com ela, para driblar a dificuldade de um professor ter de lidar sozinho com todos os alunos ao mesmo tempo, as redes podem estabelecer parcerias com faculdades de Pedagogia e cursos de licenciatura locais para receber estagiários, assim como faz a escola do Centro Pedagógico da UFMG. “Na medida do possível e bem orientados, eles podem atuar como assistentes em momentos específicos.”
Foco na realidade local
No município de São Francisco de Paula (RS), a cerca de 120 km de Porto Alegre, localiza-se a EMEF D. Pedro I, uma unidade rural. Lá, as aulas de apoio pedagógico para recomposição de aprendizagens acontecem no período regular.
“Para facilitar o entendimento, eu aproximo o conteúdo o máximo possível da realidade da criança. Como estamos no interior, é importante tratar do que acontece aqui. Os exemplos, as temáticas e as rodas de conversas são baseadas na nossa realidade”, conta a professora Eziane Padilha dos Santos, que leciona os componentes de Arte, Ensino Religioso e Ciências para as turmas de 3º, 4º e 5º anos, além de reforçar habilidades relacionadas à alfabetização.
“Leio muito para eles porque é importante que o aluno escute a leitura do professor. Depois, fazemos a leitura compartilhada mais pausada. Além do material didático, eles também têm muito contato com livros literários.”
A recomposição de aprendizagens é realizada com todos os estudantes. Como a escola não dispõe de um encontro específico para aqueles com mais dificuldades, a professora organiza momentos dentro da própria aula.
“Dou a explanação geral, e a turma vai fazendo as atividades enquanto estou focada em alguns. No 4º ano, tenho três alunos ainda não alfabetizados, e cada um está em um nível: um com dificuldade até para escrever o nome, outro que está começando a juntar sílabas e o que ainda só conhece as letras do alfabeto. Por isso as atividades são diferentes”, explica a professora.
Ela também utiliza recursos tecnológicos para diversificar as propostas, como um robô acompanhado de tapetes digitais com atividades de alfabetização e matemática.
Parcerias para avançar
Considerando que diversas habilidades de leitura e interpretação são facilmente percebidas na vida cotidiana, é importante explicar para as famílias a importância de ler livros, contar histórias e organizar a rotina de estudos em casa.
Paula Ferreira, professora do 4º ano no Colégio Municipal Dr. José Vargas de Souza, em Poços de Caldas (MG), relata que se surpreendeu positivamente ao realizar as avaliações diagnósticas. Ela atribui esse bom desempenho ao trabalho que foi feito pela escola em parceria com as famílias.
“Esperava que os alunos fossem chegar com mais dificuldade, mas foi uma minoria. É perceptível que as famílias que conseguiram manter uma rotina de estudo, acompanhar e realizar o que era passado pela escola durante as aulas remotas e atividades impressas têm filhos que conseguiram avançar”, conta a professora. “Sempre soubemos da importância dessa colaboração, mas agora fica ainda mais evidente que ela precisa continuar.”
A parceria também deve acontecer entre os docentes, para que o trabalho seja coeso e não haja discrepâncias entre as turmas, e com as Secretarias. Paula conta que todas as segundas-feiras os docentes dos Anos Iniciais realizam reuniões, além de manterem um diálogo constante.
“No 4º ano, somos eu e mais cinco professoras. Trocamos sugestões de atividades, falamos sobre o planejamento e sobre o que está ou não dando certo. As avaliações diagnósticas, por exemplo, foram elaboradas em conjunto.”
Segundo a educadora, aconteceram avaliações escritas e atividades práticas realizadas com os alunos, como leitura e jogos de palavras. Os resultados foram avaliados pela equipe da escola e enviados para a Secretaria de Educação, que está estudando as possibilidades de oferta de apoio pedagógico fora do horário regular para a rede. Ao longo do ano, os resultados de outras avaliações também serão enviados para a Secretaria para acompanhamento da aprendizagem.
A importância da formação de professores
Em São Francisco de Paula, a Secretaria de Educação tem parceria com um Sistema de Ensino, e juntos oferecem formação continuada para os docentes em vários segmentos, como alfabetização, tecnologias e saúde psicológica do professor.
Também há um site no qual as atividades realizadas pelos professores são compartilhadas, o que pode servir de inspiração para docentes de toda a rede. São realizados ainda um encontro mensal entre todos os professores da rede e um específico para professores alfabetizadores. Antes da pandemia, ele era voltado para professores de 1º, 2º e 3º anos, mas agora foi ampliado para os de 4º e 5º anos.
A professora Juliana, da escola do Centro Pedagógico da UFMG, também conta que há reuniões gerais da escola, de ciclo (como o de alfabetização) e por componente curricular. A estrutura da instituição, localizada em um campus universitário, valoriza muito a formação dos professores.
Para Katia Smole, a recomposição de aprendizagens é uma tarefa coletiva, que não pode ficar sob a responsabilidade apenas dos docentes. “Se o professor precisa de ajuda em um aspecto da alfabetização, por exemplo, a rede e a gestão escolar têm de auxiliá-lo. Não tem momento melhor para discutir os problemas e achar soluções do que as reuniões e formações. E é preciso fazer a avaliação dessa formação para saber se o professor está aprendendo e aplicando os novos conhecimentos em sala de aula.”
Cristiane Mori acrescenta que a formação deve ser atrelada à prática do professor e às necessidades reais dos alunos na escola e na sociedade. “É preciso garantir a consolidação da alfabetização para que os aprendizados promovidos pela escola, nos diferentes anos escolares e nos diferentes componentes curriculares, possam se efetivar. São eles que vão assegurar aos alunos o desenvolvimento das competências gerais [indicadas pela BNCC], que oferecem a possibilidade de compreender a realidade local e global, de se expressar com proficiência e de atuar na sociedade.”
Consultoria pedagógica: Patrícia Barreto, professora, formadora e assessora pedagógica na Educativa Consultoria Pedagógica.
Esta reportagem faz parte do projeto Recomposição de Aprendizagens nos Anos Iniciais do Fundamental. Confira os demais conteúdos realizados em parceria com a Fundação Lemann e o Instituto CSHG.
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