Audiências públicas da Base: muito potencial, pouco aproveitamento
OPINIÃO: A impressão que fica é de que esse espaço democrático criado não foi tão bem utilizado quanto poderia
POR: Laís SemisForam cinco audiências, entre julho e setembro, para consultar o público sobre a terceira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Os debates passaram por todas as regiões do Brasil, com eventos em Manaus, Olinda, Florianópolis, São Paulo e Brasília. Estive em todos eles. E, ao fim desse ciclo, a impressão que fica é de que, embora tenha sido muito interessante e rico acompanhar tantas manifestações sobre a o documento que guiará os currículos de todas as escolas brasileiras, esse espaço nos faz avançar pouco nas discussões que realmente importam ao país quando falamos de Educação.
O processo de consulta a educadores, especialistas e sociedade civil é feito desde 2015. A cada versão do documento, um novo processo de escuta foi aberto. No entanto, a forma como esses espaços - sobretudo as audiências públicas - foram ocupados é desigual e não contribui como poderia para avançarmos. Infelizmente, tivemos uma espécie de espelho do que acontece com frequência nos fóruns online: as discussões polarizaram-se, desviam-se do foco, pedem atenção aos gritos, põem as crenças pessoais sobre a visão do coletivo, indicam desconhecimento sobre a proposta e beiram o discurso de ódio (às vezes até passam desse limite).
“Em alguns momentos a gente tem a impressão que algumas questões, como a de gênero - embora relevante -, seja até maior que a Base. Acho que isso empobrece o debate. Inclusive gera uma representação muito negativa, reduzida e limitada do que é o documento”, me disse Gina Vieira, professora de Língua Portuguesa da rede pública de Brasília, ao término da audiência na capital federal. Eu concordo: as discussões poderiam ter sido tematicamente mais plurais, ricas e profundas e focadas na aprendizagem.
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Discutiu-se exaustivamente se os termos “gênero”, “identidade de gênero” e “orientação sexual” deveriam ou não constar na BNCC. Se a presença da palavra “competência” dará ao nosso ensino um caráter mais tecnicista ou se a troca dela por “objetivos de aprendizagem e desenvolvimento” resolverá nossos problemas. E se deveríamos ou não ter uma Base.
Todas essas discussões são pertinentes. Bem como a demanda de professores com formação em Educação Física para atuar na Educação Infantil. Mas essa demanda representa o interesse de uma categoria. Um documento de 396 páginas que trata do aprendizado ano a ano da Educação Infantil e Ensino Fundamental sobre todas as disciplinas merecia ter tido um olhar mais equilibrado entre todas suas partes. Ou será que todos esses que se manifestaram e defenderam fortemente a retirada de uma palavra no texto não dão a mesma importância para o fato do ensino de frações ou história da África estar ou não contemplado nas escolas?
Faltou discutirmos com a mesma intensidade a progressão de conteúdos (e não só se o ciclo de alfabetização se encerra no segundo ou terceiro ano), as expectativas e os conteúdos pertinentes para cada ano em cada disciplina, como a escola do presente dialoga com a do futuro e, nesse contexto, o que ainda faz sentido ensinar e que o mais precisa ser incluído. Faltou explorar mais os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento de cada campo de experiência, as competências específicas de cada área, os objetos de conhecimento, as habilidades.
O modelo das audiências - embora um instrumento democrático - dava brecha para isso. “Por ser uma audiência pública, não existe um controle dos assuntos que vão ser tratados, então pode acontecer de um grupo grande começar a se manifestar numa sequência que acaba monopolizando o debate”, disse Eduardo Deschamps, Secretário de Educação de Santa Catarina e presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE), na audiência pública de Florianópolis. Na ocasião, dez participantes se manifestaram consecutivamente com discursos muito próximos. O mesmo se deu nas outras capitais.
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Assim, muito do poder de manifestações ficou nas mãos dos grupos articulados em comparecer em peso nas audiências e que se inscreveram para falar. Não necessariamente são as demandas mais representativas ou os pontos mais problemáticos. Só para ilustrar a necessidade de articulação, as vagas para todas as audiências se encerraram antes do fim do prazo previsto de uma semana. “As vagas foram preenchidas às 10h30 da manhã do primeiro dia para a da região Nordeste”, me contou Fred Amâncio, secretário de Educação de Pernambuco quando conversamos sobre as expectativas para a edição de Olinda.
Além disso, as audiências não são espaços quantitativos, mas qualitativos de pedidos. Também por esse fato, por vezes, César Callegari, presidente da Comissão Bilateral da Base no CNE, pediu para que os que tivessem discursos já contemplados em falas anteriores concedessem o direito de manifestação ao próximo inscrito. No entanto, pouquíssimos abriram mão desse direito em prol de um debate mais plural para além de seus interesses pessoais e enquanto entidade.
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O sistema das audiências públicas garantia uma média de 300 participantes -- na região Sudeste foram mais de 500 e no Centro-Oeste, cerca de 250 --, com tempo de três minutos de fala. Em paralelo, os participantes deixavam documentos em texto explicando com maior detalhamento seus pontos e justificando os pedidos e alterações manifestadas. O tempo dedicado às manifestações ao longo do dia dava a oportunidade de cerca de 60 a 70 pessoas se manifestarem.
O desrespeito ao tempo de fala, mesmo quando o fim dele era anunciado, também colaborou para que menos vozes fossem ouvidas nesse processo -- faltou para alguns grupos a consciência de não colocar sua bandeira sobre a voz da democracia, que é também de garantir o lugar de fala de outros. Mas, apesar dessas constatações, não podemos dizer que não houve contribuições efetivas. Indivíduos e instituições tiveram, sim, participações que contemplavam as dúvidas e angústias educacionais sobre um documento tão complexo quanto a Base (veja mais abaixo quais foram essas contribuições em Brasília e confira a cobertura das audiências nas outras cidades).
E, felizmente, nem toda a etapa de escuta criada pelo CNE, responsável em sistematizar as contribuições e apresentar um parecer, acabou nas audiências. Tendo em vista a limitação dos eventos físicos, o órgão também disponibilizou um email para ampliar e garantir as oportunidades de colaboração. De acordo com Callegari, as sugestões recebidas pelo endereço eletrônico foram complementares ao que foi apresentado nas audiências e deve colaborar para um direcionamento do Conselho.
“As audiências foram importantes para dar visibilidade para a discussão e para mostrar que CNE e MEC estão abertos para receber propostas”, disse Rossieli Soares, secretário de Educação Básica. “Precisamos agora chegar a um acordo sobre o documento. Temos alguns pontos mais claros sobre a necessidade de serem reavaliados que surgiram dessas discussões”, diz. Entre eles, estariam a questão da nomenclatura da oralidade e escrita na Educação Infantil, Língua Portuguesa, Educação Indígena, diversidade e a própria estrutura da Base. “Alguns grupos pedem para não ter Base. Eu acho que esse não é mais um ponto de discussão. A legislação brasileira encaminha para a existência de uma Base. Acho que a pergunta que todos precisam ajudar a responder é: qual é a Base do Brasil, que une de norte a sul, e o que é comum a todos nós enquanto nação. O desafio está posto”, acredita Rossieli.
Uma oportunidade foi perdida...
O espaço para ouvir quem faz o dia a dia da Educação na prática é, sim, uma demanda que precisa ser considerada em maior escala no debate e na construção de políticas públicas educacionais. E a Base abriu alguns desses importantes espaços ao longo de seu processo em um movimento talvez único na história da Educação brasileira.
Após a apresentação da primeira versão em setembro de 2015, o Ministério da Educação (MEC) realizou uma consulta pública online de outubro daquele ano até março de 2016. Foram 12 milhões de contribuições - que iam de manifestações aleatórias, como “fora Dilma”, à considerações realmente analíticas, que mobilizaram escolas e especialistas a se debruçarem sobre o texto e opinarem sobre sua estrutura e conteúdo. Em maio, a segunda versão foi publicada. De junho e agosto de 2016, um novo ciclo de consulta: 27 seminários contemplando todos os estados do Brasil e reunindo mais de 9 mil pessoas. A partir da sistematização do que foi apontado nesses seminários, o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) encaminharam um relatório de recomendações ao ministério. Essa sistematização serviu de guia para a construção da terceira versão, apresentada em abril deste ano.
Agora, são justamente as considerações trazidas pela rodada de audiências públicas que indicarão os rumos do que deverá ser o documento final da Base Nacional Comum Curricular. Ao fim da quinta audiência, Joaquim Soares, relator do documento no CNE, estimava que o órgão teria recebido mais de 2 mil contribuições entre manifestações orais e por escrito. O número deveria crescer até às 23h59 daquele dia, quando se encerrava o prazo de colaborações por e-mail.
Apesar dessa trajetória, muitas entidades têm se pronunciado contra a existência de uma base comum unificada para todo o país. Grupos questionam o fato de que o documento auxiliaria a equidade do ensino. O adiamento das discussões da Base do Ensino Médio, por conta a reforma desta etapa de ensino, também é criticado por comprometer a progressão dos conteúdos, bem como a dinâmica usada na elaboração e consulta pública do documento e a participação de entidades privadas no debate, que representariam interesses de grupos com visão tecnicista sobre o ensino. Fato é que, enquanto esses questionamentos têm sido feitos, a discussão continua em curso e quem está participando efetivamente dela rola a bola para o gol.
...mas uma nova oportunidade vem aí
O CNE deve apresentar um parecer final sobre o texto da Base referente às etapas da Educação Infantil e Ensino Fundamental e um projeto de resolução com o conjunto de determinações legais para a implementação. Na audiência de Brasília, César Callegari disse que o Conselho está trabalhando com a perspectiva de entregá-la para apreciação do ministério até dezembro. “O Comitê Gestor da Base do MEC e a Secretaria de Educação Básica vão fazer análise do parecer e das modificações ponto a ponto. Aceitando as alterações, o Ministro homologa a Base”, explica Rossieli Soares. No caso de não aceitá-las, Mendonça Filho pode pedir a reanálise para os pontos com as devidas justificativas do pedido.
Em paralelo a este processo, a terceira versão da Base do Ensino Médio está em construção no MEC. Após a apresentação do novo documento, o texto também deve passar por algum mecanismo de consulta pública e parecer do Conselho. “Ao receber o documento, a bola passa a ser do CNE. Eles vão dizer qual o modelo”, diz Rossieli. Essa será uma nova oportunidade para educadores, especialistas e sociedade civil participarem da BNCC.
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No entanto, estar dentro de debate público exige articulação individual ou coletiva, seja para se colocar o nome assim que as inscrições forem abertas ou estudando o objeto em questão e construindo uma proposta. Exige ocupar com responsabilidade os espaços que são dados para que se tornem oportunidades de mudanças efetivas. Exige ser propositivo ao não só apontar o que é problemático, mas trazer contribuições sobre como pode ser melhorado. E também exige autocrítica ao manter um olhar não sobre o que nós, pessoalmente, queremos, mas sobre o que pode ser melhor para o futuro de mais de 40 milhões de estudantes.
Além dos temas citados nesta reportagem (Educação Física, gênero, ciclo de alfabetização, e processo e pertinência da existência de uma Base), destacaram-se em Brasília os pedidos sobre:
a) Computação na Matemática. Entidades defendem o ensino do mundo digital e pensamento computacional como uma nova unidade temática dentro da disciplina. O primeiro tema serviria para entender como funcionam os serviços da internet consumidos na sociedade moderna e o segundo, ajudaria na resolução de problemas de forma estruturada;
b) Língua Estrangeira, que traz a obrigatoriedade do ensino da Língua Inglesa. Até a aprovação da reforma do Ensino Médio, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) previa a oferta de uma Língua Estrangeira Moderna a escolha da comunidade escolar;
c) História, que deveria contemplar mais a diversidade da construção da identidade do povo brasileiro com maior foco na história africana, indígena e da América Latina;
d) Inclusão. Faltariam indicações e referências aos alunos com deficiência no documento, como, por exemplo, considerar a Educação bilíngue para os surdos com a libra sendo a primeira língua e o português, a segunda; e
e) Preocupação com a existência de diferentes formato do ensino. Grupos adeptos da pedagogia Waldorf, por exemplo, que hoje têm autonomia para determinar o currículo e metodologia, preocupam-se com o fato de que a Base determina com detalhes o aprendizado ano a ano, enquanto essas escolas trabalham por ciclos.
Confira como foram as audiências anteriores da Base:
- Referências a gênero dominam a primeira das audiências finais da Base
- BNCC: no Nordeste, audiência quente expõe polarização
- Grupo monopoliza audiência da Base em Florianópolis e tira voz dos professores
- CNE sinaliza alterações na Base de quatro disciplinas
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